sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Falsos irmãos e amigos ineptos

Por Allan Kardec

Como demonstramos no artigo precedente, nada poderia prevalecer contra o destino providencial do Espiritismo. Do mesmo modo que ninguém pode impedir a queda daquilo que pelas leis divinas deve cair, ─ homens, povos ou coisas ─ nada pode travar a marcha daquilo que tem de avançar.

Em relação ao Espiritismo, esta verdade ressalta dos fatos realizados e, muito mais ainda, de outro ponto capital. Se o Espiritismo fosse uma simples teoria, um sistema, poderia ser combatido por outro sistema, mas ele repousa numa lei da Natureza, assim como o movimento da Terra.

A existência dos Espíritos é inerente à espécie humana. Não é possível evitar que existam, como não se pode impedir a sua manifestação, do mesmo modo que não se impede o homem de caminhar. Para tanto eles não precisam de licença e se riem de toda proibição, pois não se deve perder de vista que, além das manifestações mediúnicas propriamente ditas, há manifestações naturais e espontâneas, que se produziram em todos os tempos e que se produzem diariamente numa porção de gente que jamais ouviu falar de Espíritos.

Quem, pois, poderia opor-se ao desenvolvimento de uma lei da Natureza? Sendo obra de Deus, insurgir-se contra essa lei é revoltar-se contra Deus.

Estas considerações explicam a inutilidade dos ataques dirigidos contra o Espiritismo. O que tem os espíritas a fazer em presença dessas agressões é continuar pacificamente seus trabalhos, sem basófia, com a calma e a confiança dadas pela certeza de atingir o objetivo.

Contudo, se nada pode parar a marcha geral, há circunstâncias que podem determinar entraves parciais, como uma pequena barragem pode desacelerar o curso de um rio, sem impedi-lo de correr. Entre essas circunstâncias estão os movimentos inconsiderados de certos adeptos mais zelosos que prudentes, que não calculam bem o alcance de seus atos ou de suas palavras. Assim, produzem sobre as pessoas não iniciadas na doutrina uma impressão desfavorável, muito mais própria a afastá-las que as diatribes dos adversários.

Sem dúvida, o Espiritismo está muito difundido, mas estaria ainda mais se todos os adeptos tivessem sempre escutado os conselhos da prudência e guardado uma sábia reserva. Sem dúvida é preciso levar-lhes em conta a intenção, mas é certo que mais de um tem justificado o provérbio: “Melhor um inimigo declarado que um amigo inepto.”

O pior disto é fornecer armas aos adversários, que sabem explorar habilmente uma falha. Nunca seria demais recomendar aos espíritas refletir maduramente antes de agir. Em tais casos manda a prudência não se bastar à opinião pessoal. Hoje, que de todos os lados se formam grupos ou sociedades, nada mais simples que se reunir antes de agir. Não tendo em vista senão o bem da causa, o verdadeiro espírita sabe fazer abnegação do amor próprio. Crer em sua infalibilidade, recusar o conselho da maioria e persistir num caminho que se revela mau e comprometedor, não é atitude do verdadeiro espírita. Seria dar prova de orgulho, senão de obsessão.

Entre as inabilidades colocam-se em primeira linha as publicações intempestivas ou excêntricas, por serem fatos de maior repercussão. Nenhum espírita ignora que os Espíritos estão longe de possuir a ciência suprema, pois muitos dentre eles sabem menos que certos homens e também, como certos homens, têm a pretensão de saber tudo. Sobre todas as coisas têm sua opinião pessoal, que pode estar certa ou errada. Ora, ainda como os homens, os que têm ideias mais falsas são os mais cabeçudos. Esses falsos sábios falam de tudo, armam sistemas, criam utopias ou ditam as coisas mais excêntricas e sentem-se felizes quando encontram intérpretes complacentes e crédulos que aceitam as suas elucubrações de olhos fechados. Tais publicações têm inconvenientes muito graves, porque o próprio médium, enganado, seduzido muitas vezes por um nome apócrifo, as dá como coisas sérias das quais a crítica se apodera para denegrir o Espiritismo, ao passo que, com menos presunção, bastaria ter-se aconselhado com os colegas para ser esclarecido. É muito raro que, neste caso, o médium não ceda às injunções de um Espírito que, ainda como certos homens, quer ser publicado a qualquer preço. Com mais experiência ele saberia que os Espíritos verdadeiramente superiores aconselham, mas nem se impõem nem adulam jamais e que toda prescrição imperiosa é um sinal suspeito.

Quando o Espiritismo estiver completamente assente e conhecido, as publicações dessa natureza não terão mais inconvenientes que os maus tratados de ciência em nossos dias. Mas no começo — repetimo-lo – elas têm um lado muito prejudicial. Assim, em se tratando de publicidade, toda circunspecção é pouca e não se calcularia com bastante cuidado o efeito que talvez produzisse sobre o leitor. Em resumo, é um grave erro crer-se obrigado a publicar tudo quanto ditam os Espíritos, porque, se os há bons e esclarecidos, também os há maus e ignorantes. Importa fazer uma escolha muito rigorosa de suas comunicações e afastar tudo quanto for inútil, insignificante, falso ou de natureza a produzir má impressão. E necessário semear, sem dúvida, mas semear boa semente e em tempo oportuno.

Passemos a assunto ainda mais grave, os falsos irmãos. Os adversários do Espiritismo, alguns pelo menos, porquanto existem os de boa-fé, eles não são, como se sabe, absolutamente escrupulosos quanto à escolha dos meios. Para eles tudo vale na guerra, e quando não se pode tomar a cidadela de assalto, mina-se-lhe as bases. Na falta de boas razões, que são as armas leais, vemo-los diariamente despejar mentiras e calúnias sobre o Espiritismo. A calúnia é odiosa, eles bem o sabem, e a mentira pode ser desmentida. Assim, procuram fatos para justificar-se. Mas como achar fatos comprometedores entre gente séria, senão os produzindo por si mesmos ou pelos afiliados? O perigo não está no ataque aberto, nem nas perseguições, nem mesmo nas calúnias, como vimos. Está nos artifícios ocultos empregados para desacreditar e arruinar o Espiritismo por si mesmo. Consegui-lo-ão? É o que vamos examinar.

Já chamamos a atenção para essa manobra no relatório de nossa viagem de 1862, porque, em nossa caminhada, recebemos três beijos de Judas, com os quais não nos enganamos, posto não nos tivéssemos manifestado. Aliás, tínhamos sido prevenidos antes de nossa partida, bem como das armadilhas que nos seriam preparadas. Mas ficamos de olho, certo de que um dia mostrariam as unhas, porque é tão difícil a um falso espírita imitar sempre um verdadeiro espírita, quanto a um mau Espírito simular um Espírito superior. Nem um nem outro pode sustentar seu papel por muito tempo.

De várias localidades nos indicam homens e senhoras de antecedentes e ligações suspeitas, cujo zelo aparente pelo Espiritismo apenas inspira medíocre confiança, e não nos surpreendemos de entre eles encontrar os três Judas de que falamos: eles existem nas baixas e nas altas camadas. Da parte deles muitas vezes é mais que zelo: é entusiasmo, uma admiração fanática. Em sua opinião, seu devotamento vai até o sacrifício de seus interesses e, não obstante, não atraem simpatias: um fluido malsão parece envolvê-los; sua presença nas reuniões lança um manto de gelo. Acrescente-se que os meios de subsistência de alguns é um proble­ma, sobretudo no interior, onde todo mundo se conhece.

O que caracteriza principalmente esses pretensos adeptos é a tendência para fazer o Espiritismo sair dos caminhos da prudência e da moderação por seu ardente desejo do triunfo da verdade; a estimular as publicações excêntricas; a extasiar-se de admiração ante as comunicações apócrifas mais ridículas que eles têm o cui­dado de espalhar; a provocar, nas reuniões, assuntos comprometedores sobre política e religião, sempre para a vitória da verdade que não pode ficar sob o velador. Seus elogios aos homens e às coisas são incensórios de arrebentar: são os ferrabrás do Espiritismo. Outros são mais adocicados e hipócritas. Com olhar oblíquo e palavras melosas sopram a discórdia enquanto pregam a união. Colocam em discussão, com habilidade, questões irritantes ou ferinas, assuntos de natureza a provocar dissidências. Excitam uma inveja de preponderância entre os vários grupos e ficariam encantados se os vissem a se apedrejarem e, em favor de algumas diferenças de opinião sobre questões formais ou de fundo, geral­mente provocadas, erguerem bandeira contra bandeira.

Alguns, ao que dizem, fazem enorme aquisição de livros espíritas, de que os livreiros mal se apercebem, e uma propaganda intensa. Mas, por efeito do acaso, a escolha de seus adeptos é infeliz. Uma fatalidade os leva a procurar de preferência gente exaltada, de ideias obtusas, ou que já deram sinais de aberração. Depois, ao estourar um caso que deploram gritando por toda parte, constata-se que essa gente se ocupava do Espiritismo, do qual, a maior parte do tempo, não entenderam uma palavra. Aos livros espíritas que esses zelosos apóstolos distribuem generosamente, com frequência adicionam, não críticas, pois seria inabilidade, mas livros de magia e feitiçaria ou escritos políticos pouco ortodoxos, ou ignóbeis diatribes contra a religião, a fim de que, surgindo um caso, fortuito ou não, numa verificação se possa confundir tudo.

Como é mais cômodo ter as coisas na mão, para ter compadres dóceis, o que não se encontra em toda parte, alguns organizam ou fazem organizar reuniões onde se ocupam de preferência daquilo que precisamente o Espiritismo desaconselha, e onde há o cuidado de atrair estranhos que nem sempre são amigos. Ali o sagrado e o profano estão indignamente confundidos; os mais venerados nomes são misturados às mais ridículas práticas de magia negra, acompanhadas de sinais e termos cabalísticos, talismãs, tripés sibilinos e outros acessórios. Alguns adicionam, como complemento, e por vezes com objetivo de lucro, a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, o sonambulismo pago etc. Espíritos complacentes, que aí encontram intérpretes não menos complacentes, predizem o futuro, leem a buena-dicha, descobrem tesouros ocultos e tios na América e, caso necessário, indicam o curso da bolsa e os números premiados na loteria. Depois, um belo dia, a justiça intervém, ou a gente lê nos jornais a descrição de uma sessão espírita à qual o autor assistiu e conta o que viu; o que viu com seus próprios olhos.

Tentareis trazer toda essa gente a ideias mais sãs? Seria trabalho perdido, e compreende-se por quê: A razão e o lado sério da doutrina não lhes interessa; é o que mais os aflige. Dizer-lhes que prejudicam a causa e que dão armas aos inimigos é agradá-los. Seu objetivo é desacreditá-la, com ares de defendê-la. Instrumentos, não temem comprometer os outros, levando-os a enfrentar os rigores da lei, nem a si mesmos, pois sabem arranjar uma compensação.

Nem sempre seu papel é idêntico: varia conforme sua posição social, suas aptidões, a natureza de suas relações e o elemento que os faz agir, mas o objetivo é sempre o mesmo. Nem todos empregam meios tão grosseiros, mas que nem por isto são menos pérfidos. Lede certas publicações que se dizem simpáticas à ideia, e mesmo aparentemente em defesa da idéia; examinai todos os pensamentos e vede se por vezes ao lado de uma aprovação posta à guisa de cobertura e de etiqueta, não descobris, como que lançado ao acaso, um pensamento insidioso, uma insinuação de sentido dúbio, um fato relatado de modo ambíguo e que pode ser interpretado desfavoravelmente. Entre estes, uns são menos velados e, sob o manto do Espiritismo, têm em vista suscitar divisões entre adeptos.

Por certo nos perguntarão se todas as torpezas de que acabamos de falar são invariavelmente manobras ocultas ou uma comédia com fim interesseiro, e se também não podem ser um movimento espontâneo. Numa palavra, se todos os espíritas são homens de bom-senso e incapazes de se enganar.

Pretender que todos os espíritas sejam infalíveis seria tão absurdo quanto a pretensão dos nossos adversários ao privilégio exclusivo da razão. Mas se alguns se enganam, é que se confundem quanto ao sentido e a finalidade da doutrina. Neste caso, sua opinião não pode fazer lei e é ilógico ou desleal, conforme a intenção, tomar a ideia individual pela ideia geral e explorar a exceção. Seria o mesmo que tomar as aberrações de alguns sábios como regra de ciência. A esses diremos: Se quiserdes saber de que lado está a presunção de verdade, estudai os princípios admitidos pela imensa maioria, se ainda não for pela unanimidade absoluta dos espíritas do mundo inteiro.

Os crentes de boa-fé, pois, podem enganar-se, e não julgamos crime se não pensarem como nós. Se, entre as torpezas acima referidas, algumas fossem apenas opinião pessoal, só poderíamos ver nisso desvios isolados, lamentáveis, mas seria injusto fazer recair a responsabilidade sobre a doutrina que os repudia claramente. Mas se dizemos que podem ser o resultado de manobras interessadas, é que nosso quadro é feito sobre modelos. Ora, como é a única coisa que o Espiritismo tem realmente a temer no momento, convidamos todos os adeptos sinceros a se porem em guarda, evitando as ciladas que lhes poderiam armar. Para tanto não seria demasiada a circunspecção na escolha de elementos a introduzir nas reuniões, nem a cuidadosa repulsa a todas as sugestões que tendessem a desnaturar o caráter essencialmente moral. Mantendo a ordem, a dignidade e a gravidade que convém a homens sérios, ocupados com uma coisa séria, fecharão o acesso aos mal-intencionados, que se retirarão quando reconhecerem que aí nada têm a fazer. Pelos mesmos motivos, devem declinar de toda solidariedade com as reuniões formadas fora das condições prescritas pela sã razão e pelos verdadeiros princípios da doutrina, se eles não puderem conduzi-los ao bom caminho.

Como se vê, há certamente uma grande diferença entre falsos irmãos e amigos ineptos, mas, sem o querer, o resultado pode ser o mesmo: desacreditar a doutrina. A nuança que os separa frequentemente está apenas na intenção, o que, por vezes, permitiria a confusão, e, vendo-os servir aos interesses do partido contrário, supor que por este foram conquistados. A circunspecção é, pois, sobretudo neste momento, mais necessária que nunca, pois não devemos esquecer que palavras, ações e escritos inconsiderados são explorados, e que os adversários se encantam por poderem dizer que isto vem dos Espíritos.

Neste estado de coisas, compreende-se que armas a especulação, em razão dos abusos aos quais ela pode dar lugar, pode oferecer aos detratores para apoiar a acusação de charlatanice. Isto, pois, em certos casos, pode ser uma cilada da qual se deve desconfiar. Ora, como não há charlatanice filantrópica, a abnegação e o desinteresse absolutos dos médiuns tiram dos detratores um de seus mais poderosos meios de denegrir, cortando cerce toda discussão a respeito desse assunto.

Levar a desconfiança ao excesso seria um erro grave, sem dúvida, mas em tempo de guerra, e quando se conhece a tática do inimigo, a prudência torna-se uma necessidade que não exclui nem a moderação nem a observação das conveniências, das quais nunca nos devemos separar.

Por outro lado, não nos deveríamos enganar quanto ao caráter do verdadeiro espírita, pois há nele uma franqueza de atitudes que desafia qualquer suspeita, sobretudo quando corroborada pela prática dos princípios da doutrina. Mesmo que se erga bandeira contra bandeira, como tentam fazer nossos antagonistas, o futuro de cada uma está subordinado à soma de consolações e satisfações morais que elas trazem. Um sistema não pode prevalecer sobre outro se não for mais lógico, o que só a opinião pública pode julgar. Em todo caso, a violência, as injúrias e a acrimônia são maus antecedentes e uma recomendação ainda pior.

Resta examinar as consequências de tal estado de coisas. Essas manobras, sem dúvida, podem levar momentaneamente a algumas perturbações parciais, razão pela qual é necessário adiá-las tanto quanto possível, mas não prejudicariam o futuro, em primeiro lugar porque terão um tempo restrito, de vez que são uma manobra da oposição que cairá pela força das coisas; em segundo lugar porque, digam o que disserem e façam o que fizerem, jamais tirarão da doutrina seu caráter distintivo, sua filosofia racional e sua moral consoladora. Por mais que a torturem e deformem, por mais que façam falar os Espíritos à sua vontade ou recolham comunicações apócrifas para lançar contradições, não farão prevalecer um ensino isolado, mesmo que verdadeiro e não suposto, contra aquele que é dado por toda parte.

O Espiritismo se distingue de todas as outras filosofias porque não é concepção filosófica de um homem só, mas de um ensino que cada um pode receber em todos os cantos da Terra, e tal é a consagração que O Livro dos Espíritos recebeu. Escrito sem equívocos possíveis e ao alcance de todas as inteligências, esse livro será sempre a expressão clara e exata da doutrina e a transmitirá intacta aos que vierem depois de nós. As cóleras que ele excita são indícios do papel que tem de representar, e da dificuldade de lhe opor algo de mais sério. O que fez o rápido sucesso da Doutrina Espírita foram as consolações e as esperanças que ela dá. Todo sistema que, pela negação dos princípios fundamentais, tendesse a destruir a própria fonte dessas consolações, não poderia ser acolhido com indulgência.

É preciso não perder de vista que estamos, como já dissemos, em momento de transição, e que nenhuma transição se opera sem conflito. Não se admirem de ver agitarem-se as paixões em jogo, as ambições comprometidas, as pretensões frustradas, e cada um tentar retomar o que lhe escapa, aferrando-se ao passado. Pouco a pouco, tudo isso se extingue. A febre se acalma, os homens passam e as ideias novas ficam.

Espíritas, elevai-vos pelo pensa­mento. Lançai vosso olhar vinte anos para a frente, e o presente não mais vos inquietará.

Revista Espírita Março 1863

Luta entre o passado e o futuro

Por Allan Kardec

Uma verdadeira cruzada ocorre neste momento contra o Espiritismo, assim como isso nos foi anunciado; de diversos lados se nos assinalam escritos, discursos e mesmo atos de violência e de intolerância; todos os Espíritas devem se alegrar com isso, porque é a prova evidente de que o Espiritismo não é uma quimera. Fariam tanto barulho por uma mosca que voa?

O que excita, sobretudo, essa grande cólera é a prodigiosa rapidez com a qual a idéia nova se propaga, apesar de tudo o que se fez para detê-la. Também nossos adversários, forçados pela evidência de reconhecer que esse progresso invade as classes mais esclarecidas da sociedade e mesmo os homens de ciência, se reduziram a deplorar esse arrastamento fatal que conduz a sociedade inteira aos manicômios. A zombaria esgotou seu arsenal de piadas e de sarcasmos, e essa arma, que se diz tão terrível, não pôde colocar os galhofeiros de seu lado, prova de que não tem matéria para rir. Não é menos evidente que ela não tirou um único partidário à Doutrina, longe disso, uma vez que aumentaram a olhos vistos. A razão disso é bem simples: reconheceu-se prontamente tudo o que há de profundamente religioso nessa Doutrina que toca as cordas mais sensíveis do coração, que eleva a alma para o infinito, que faz reconhecer a Deus àqueles que o tinham desconhecido; ela arrancou tantos homens ao desespero, acalmou tantas dores, cicatrizou tantas feridas morais, que os tolos e os chatos gracejos derramados sobre ela inspiraram mais desgosto do que simpatia. Os zombadores em vão se incomodaram sem proveito para fazer rir às suas custas; há coisas das quais, instintivamente, sente-se que não se pode rir sem profanação.

No entanto, se algumas pessoas, não conhecendo a Doutrina senão pelos gracejos sem graça, puderam crer que não se tratava senão de um sonho oco, de elucubração de um cérebro danificado, o que se passa é bem feito para desenganá-los. Ouvindo tantas declamações iradas, devem dizer a si mesmo que é mais sério do que não pensavam.

A população pode se dividir em três classes: os crentes, os incrédulos e os indiferentes. Se o número dos crentes centuplicou depois de alguns anos, isso não pode ser senão às custas das duas outras categorias. Mas os Espíritos que dirigem o movimento acharam que as coisas não iam ainda bastante depressa. Há ainda, disseram a si mesmos, muitas pessoas que não ouviram falar do Espiritismo, sobretudo no campo; é tempo de que a Doutrina ali penetre; além disso, é preciso despertar os indiferentes adormecidos. A zombaria fez seu trabalho de propaganda involuntária, mas tirou todas as flechas de seu estojo, mas as setas que ela dispara ainda são menos cortantes; é um fogo muito pálido agora. É preciso alguma coisa mais vigorosa, que faça mais barulho do que o tinir dos folhetins, que repercuta mesmo nas solidões; é preciso que a última aldeia ouça falar do Espiritismo. Quando a artilharia voltar, cada um se perguntará: O que há? e quererá ver.

Quando fizemos a pequena brochura: O Espiritismo em sua mais simples expressão, perguntamos aos nossos guias espirituais que efeito ela produziria. Foi-nos respondido: Ela produzirá um efeito ao qual não esperas, quer dizer, teus adversários ficarão furiosos em ver uma publicação destinada, pelo seu extremo preço pouco elevado, a ser difundida em massa e penetrar por toda a parte. Anunciado te foi um grande desdobramento de hostilidades, tua brochura dele será o sinal. Não te preocupes com isso, conheces o fim. Eles se irritam em razão da dificuldade em refutar teus argumentos. Uma vez que assim é, dissemos, essa brochura, que deveria ser vendida por 25 centavos, será dada por duas moedas. O acontecimento justificou essas previsões, e disso nos felicitamos.

Tudo o que se passa, aliás, foi previsto e deveria ser para o bem da causa. Quando virdes alguma grande manifestação hostil, longe de vos amedrontar com ela, alegrai-vos, porque foi dito: o estrondo do raio será o sinal da aproximação dos tempos preditos. Orai então, meus irmãos; orai, sobretudo pelos vossos inimigos, porque serão tomados de uma verdadeira vertigem.

Mas nem tudo ainda se cumpriu; a chama da fogueira de Barcelona não subiu tão alto. Se ela se renova em alguma parte, guardai-vos de extingui-la, porque ela se elevará mais, semelhante a um farol, será vista de longe, e ficará na lembrança das idades. Deixai, pois, fazer e em nenhuma parte oponde a violência à violência; lembrai-vos de que o Cristo disse a Pedro para guardar sua espada na bainha. Não imiteis as seitas que se entredilaceraram em nome de um Deus de paz, que cada um chamava em ajuda aos seus furores. A verdade não se prova pelas perseguições, mas pelo raciocínio; as perseguições, em todos os tempos, foram a arma das más causas, e daqueles que tomam o triunfo da força bruta pelo da razão. A perseguição é um meio mau de persuasão; pode momentaneamente abater o mais fraco, convencê-lo, jamais; porque, mesmo na aflição em que o tiver mergulhado, exclamará, como Galileu em sua prisão: e pur si muove! Recorrer à perseguição é provar que se conta pouco com o poder de sua lógica. Não useis, pois, de represálias: à violência oponde a doçura e uma inalterável tranqüilidade; restitui aos vossos inimigos o bem pelo mal; por aí dareis um desmentido às suas calúnias, e forçá-los-eis a reconhecer que vossas crenças são melhores do que eles dizem.

A calúnia! direis; pode-se ver com sangue frio nossa Doutrina indignamente deturpada por mentiras? acusada de dizer o que não disse, de ensinar o contrário do que ela ensina, de produzir o mal ao passo que não produz senão o bem? A própria autoridade daqueles que têm uma tal linguagem não pode dobrar a opinião, retardar o progresso do Espiritismo?

Incontestavelmente está aí seu o objetivo; atingi-lo-ão? É uma outra questão, e não hesitamos em dizer que chegam a um resultado todo contrário: o de se desacreditarem e à sua causa. A calúnia, sem contradita, é uma arma perigosa e pérfida, mas tem dois gumes e fere sempre aquele que dela se serve. Recorrer à mentira para se defender é a mais forte prova de que não se tem boas razões para dar, porque, tendo-as, não se deixaria de fazê-las valer. Dizeis que uma coisa é má, se tal é vossa opinião; gritai-o sobre os telhados, se bom vos parece, cabe ao público julgar se estais no erro ou na verdade; mas deturpá-la para apoiar vosso sentimento, desnaturá-la, é indigno de todo homem que se respeita. Nos relatórios das obras dramáticas e literárias, vêem-se freqüentemente apreciações muito opostas; um crítico louva exageradamente o que um outro achincalha: é seu direito; mas o que se pensaria daquele que, para sustentar a sua censura faria o autor dizer o que não disse, lhe emprestaria maus versos para provar que sua poesia é detestável?

Ocorre assim com os detratores do Espiritismo: pelas suas calúnias mostram a fraqueza de sua própria causa e a desacreditam fazendo ver a que lamentáveis extremismos são obrigados a recorrer para sustentá-la. De que peso pode ser uma opinião fundada sobre erros manifestos? De duas coisas uma, ou esses erros são voluntários, e então se vê a má fé; ou são involuntários, e o autor prova sua inconseqüência falando do que não sabe; num e noutro caso perde todo direito à confiança.

O Espiritismo não é uma Doutrina que caminha na sombra; ele é conhecido, seus princípios são formulados de maneira clara, precisa, e sem ambigüidade. A calúnia, pois, não poderia atingi-lo; basta, para convencê-la de impostura, dizer: lede e vede. Sem dúvida, é útil desmascará-la; mas é preciso fazê-lo com calma, sem aspereza nem recriminação, limitando-se a opor, sem discursos supérfluos, o que é do que não é; deixai aos vossos adversários a cólera e as injúrias, guardai para vós o papel da força verdadeira: o da dignidade e da moderação.

De resto, não é preciso exagerar as conseqüências dessas calúnias, que levam consigo o antídoto de seu veneno, e são em definitivo mais vantajosas do que nocivas. Forçosamente, elas provocam o exame de homens sérios que querem julgar as coisas por si mesmos, e nisso são excitados em razão da importância que se lhe dá; ora, o Espiritismo, longe de temer o exame, provoca-o, e não se lamenta senão de uma coisa, é que tantas pessoas dele falam como os cegos das cores; mas graças aos cuidados que nossos adversários tomam em fazê-lo conhecer, esse inconveniente logo não existirá mais, e é tudo o que pedimos. A calúnia que ressalta desse exame engrandece-o em lugar de rebaixá-lo.

Espíritas, não lamenteis, pois, essas deturpações; não tirarão nenhuma das qualidades do Espiritismo; ao contrário, as farão ressaltar com mais estrondo pelo contraste, e se voltarão para a confusão dos caluniadores: essas mentiras, certamente, podem ter por efeito imediato enganar algumas pessoas, e mesmo desviá-las; mas o que é isso? O quê são alguns indivíduos perto das massas? Sabeis, vós mesmos, quanto o seu número é pouco considerável. Que influência isso pode ter sobre o futuro? Esse futuro vos está as segurado: os fatos realizados vos respondem por ele, e cada dia vos traz a prova da inutilidade dos ataques de nossos adversários. A doutrina do Cristo não foi caluniada, qualificada de subversiva e de ímpia? Ele mesmo não foi tratado como velhaco e como impostor? Perturbou-se com isso? Não, porque sabia que seus inimigos passariam e que a sua doutrina ficaria. Assim o será com o Espiritismo. Singular coincidência! Não é outro senão chamado à pura lei do Cristo, e é atacada com as mesmas armas! Mas seus detratores passarão; é uma necessidade à qual ninguém pode se subtrair. A geração atual se extingue todos os dias, e com ela vão os homens imbuídos dos preconceitos de um outro tempo; a que se ergue está nutrida de idéias novas, e sabeis, aliás, que se compõe de Espíritos mais avançados que devem fazer, enfim, a lei de Deus reinar sobre a Terra. Olhai, pois, as coisas de mais alto; não as vejais do ponto de vista restrito do presente, mais estendei vossos olhares para o futuro e dizei a vós mesmos: O futuro é nosso; que nos importa o presente! Que nos fazem as questões de pessoas! As pessoas passam, as instituições ficam. Pensai que estamos num momento de transição; que assistimos à luta entre o passado que se debate e se coloca para trás, e o futuro que nasce e se coloca para adiante. Quem levará a melhor? O passado é vicioso e caduco, - falamos das idéias, - ao passo que o futuro é jovem, e caminha para a conquista do progresso que está nas leis de Deus. Os homens do passado se vão com ele; os do futuro chegam; saibamos, pois, esperar com confiança e nos felicitemos por sermos os primeiros pioneiros encarregados de arrotear o terreno. Se temos o trabalho, teremos o salário. Trabalhemos, pois, não para uma propaganda colérica e irrefletida, mas com a paciência e a perseverança do trabalhador que sabe o tempo que lhe é preciso para chegar à colheita. Semeemos a idéia, mas não comprometamos a colheita por um ensinamento intempestivo e por nossa impaciência, antecedendo a estação própria para cada coisa. Cultivemos, sobretudo as plantas férteis que não pedem senão produzir; são bastante numerosas para ocupar todos os nossos instantes, sem usar nossas forças contra rochas irremovíveis que Deus se encarrega de abalar e destruir, quando chegar seu tempo, porque se tem a força de elevar as montanhas, tem a de abaixá-las. Tiremos a figura, e digamos simplesmente que há resistências que seria supérfluo procurar vencer, e que se obstinam mais por amor-próprio, ou por interesse, do que por convicção; seria perder seu tempo procurar traze-los a si; não cederão senão diante da força da opinião. Recrutemos os adeptos entre as pessoas de boa vontade, que não faltam; aumentemos a falange de todos aqueles que, cansados da dúvida e assustados com o nada materialista, não pedem senão crer, e logo o número deles será tal que os outros acabarão por se render à evidência. Esse resultado já se manifesta, e esperai, dentro em pouco, a ver em vossas fileiras aqueles que nela não esperáveis senão os últimos.

Revista Espírita Março 1863

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

As mediunidades de Kardec


Por Sergio Fernandes Aleixo

O codificador do espiritismo[1] leciona que os médiuns inspirados têm mais dificuldade de discernir o pensamento que lhes é sugerido daquele que lhes é próprio, ao oposto dos médiuns intuitivos, nos quais essa distinção se apresenta mais sensível, sendo os primeiros uma variedade dos segundos. Considera ainda o mestre espírita que, bem sugestionados por nossos anjos guardiães, espíritos protetores e familiares, sob esse aspecto, todos somos médiuns. Motivo, pois, não haveria para que Kardec não o fosse. E o era, por sinal, do Espírito da Verdade, seu guia, publicamente declarado.[2]

Reconheceu, além disso, ser assistido com ideias que lhe eram sugeridas pelos espíritos, ao mesmo tempo em que afirmou não ter “nenhuma das qualidades exteriores da mediunidade efetiva”.[3] Que quis dizer o mestre com isto? Eis a questão. Que não via, nem ouvia espíritos? Ou, por outra, que não lhe causavam frêmitos agindo sobre seu braço para fazê-lo escrever, nem lhe provocavam transes? Esta segunda alternativa é mais razoável para “qualidades exteriores” da mediunidade efetiva, visto que pode ser efetiva, ou seja, real, sem ser ostensiva, isto é, notada, manifesta à percepção de terceiros.

Certa feita, observado em meio a seu trabalho por um espírito que manteve diálogo mediúnico com um leitor da sua Revista, Kardec foi surpreendido a escrever, e estava rodeado por cerca de vinte espíritos, que “murmuravam acima de sua cabeça”. Segundo esse espírito, Kardec os “ouvia” tão bem que olhava para todos os lados para ver de onde vinha o “ruído”, chegando a erguer-se, abrir a janela e checar se não seria, por acaso, o vento ou a chuva. Comunicado sobre isso por correspondência posteriormente publicada na sua Revista, o mestre externou que o fato era absolutamente exato. Contudo, fica esclarecido que só dois ou três desses cerca de vinte espíritos sopravam diretamente ao codificador o que deveria escrever, e que o mestre julgava serem dele mesmo as ideias. Médium, pois, inspirado; quase audiente neste caso;[4] o que também se deduz da mensagem de 14 de setembro de 1863, em que a ação espiritual é relatada tão constante ao derredor do mestre, sobretudo a do Espírito da Verdade, que mesmo ele não a podia negar.[5]

Até aqui, não pode haver dúvidas nem discordâncias sobre a mediunidade de Kardec. Intuição, inspiração, semiaudiência. Mas pode-se ir além? E quanto a ver os espíritos? Bem... Kardec ensina que quase sempre os médiuns videntes exercem essa faculdade em estado sonambúlico, ou dele aproximado; que não raro ela é efeito de crise passageira e, nessa medida, apresenta, portanto, a qualidade exterior do transe. Segundo o mestre, porém, alguns médiuns videntes exercem sua faculdade em estado normal, perfeitamente acordados.[6] A priori, não há deste último tipo de exercício qualquer qualidade exterior; é efetivo, mas não ostensivo, a menos que se possa aferir a precisão das visões mediúnicas, por exemplo, nos casos de reconhecimento de falecidos por terceiros.

Ora, em O Livro dos Espíritos, 257, Kardec surpreende ao dizer que viu desencarnados atravessando o fogo sem que isso lhes causasse dor alguma. No original: “nous en avons vu passer à travers les flammes”: “já os vimos atravessar chamas”;[7] “vimo-los passar através das chamas”.[8] Para não conferir a seus textos conotação muito impositiva e pessoal, escritores podem tratar a si mesmos por nós em vez de eu. Chama-se plural de modéstia.[9] Uma constante, aliás, em Kardec; quase sempre se refere a si na 1.ª pessoa do plural; raramente na 1.ª pessoa do singular. Mesmo que se queira imaginar aí a expressão de experiência compartilhada por outros, ainda assim, o próprio Kardec estará incluído na ação verbal; doutro modo, escreveria algo como “foram vistos”, ou “têm sido vistos passar através das chamas”, e nunca: “nós os vimos, os temos visto”. Entenda-se: “Eu os vi, os tenho visto passar pelas chamas”.

Em O Livro dos Médiuns, 169, o mestre espírita reporta uma experiência, desta vez junto a muito bom médium vidente, que o acompanhou a uma ópera.[10] Ali mesmo, após um baixar da cortina, evocou e conversou com Weber, autor de Obéron. Este, após estabelecer breve diálogo com Kardec e o médium, deixou-os, prometendo insuflar nos cantores mais ímpeto. Dito e efeito. Nesse ínterim, Kardec surpreende novamente ao escrever: “Alors on le vit sur la scène, planant au-dessus des acteurs; un effluve semblait partir de lui et se répandre sur eux; à ce moment, il y eut chez eux une recrudescence visible d'énergie”: “Vimo-lo então sobre o palco, pairando acima dos atores. Um eflúvio parecia derramar dele para os intérpretes, espalhando-se sobre eles. Nesse momento verificou-se entre eles uma visível recrudescência da energia”.[11] Kardec mesmo viu o espírito e, pois, trata-se de novo plural de modéstia; ou, por outro lado, como neste caso é possível considerar, foi o mestre partícipe da visão do médium, o que, ali, até funcionou como controle, garantindo a um e outro que não eram vítimas da imaginação; ambos viram. Como quer que seja, Kardec viu o espírito de Weber sobre os atores em cena.

Contra isso, aparentemente, vai uma observação do codificador sobre a descrição de dois espíritos que viveram em passado mais distante e que foram avistados por aquele que, provavelmente, era o mesmo médium que esteve com ele na ópera. Escreve o mestre que, nesse caso, nada podia provar que não se tratasse apenas da imaginação do sensitivo, porque não havia “controle”, i. é, uma confirmação da descrição da aparência dos espíritos, como houve noutros exemplos relativos a mortos recentes e cujos detalhes atinentes a seu aspecto puderam ser subscritos por amigos e parentes dos falecidos. Nada, porém, existe aí que negue a Kardec a eventual condição de médium vidente, discretamente externada nos passos comentados de O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns. Outra forma de comprovação seria Kardec, ou um terceiro, também avistá-los. Parece, contudo, que isso não ocorreu, o que não é desabonador a priori, como bem explica o mestre na referida observação.[12]

[1] Kardec disse: “Em tudo isto não fiz senão recolher e coordenar metodicamente o ensino dado pelos Espíritos; sem levar em conta opiniões isoladas, adotei as do maior número, afastando todas as ideias sistemáticas, individuais, excêntricas ou em contradição com os dados positivos da Ciência”. (Revista Espírita. Set/1863. Segunda Carta ao Padre Marouzeau.) Modesto, minimizou sua participação; entretanto, o advérbio revela a importância pessoal dele: “recolher e coordenar metodicamente”. Não menos relevante é o fato de Kardec haver bem fixado a matéria-prima do seu trabalho: “o ensino dado pelos espíritos”. Kardec não inventou nenhum princípio. Todos resultaram do ensino; todavia, submetido, sim, à conjuntura dessa coleta e coordenação metódica, mérito de Kardec, sem o que não haveria espiritismo. Uma codificação implica o ato de codificar, que não é só reunir, compilar; há que fazê-lo sistematicamente (A.B.L., 2008). No caso do espiritismo, ou doutrina dos espíritos, ou espírita, houve reunião, compilação de materiais e, daí, a inferência paradigmática de princípios, cujo estabelecimento se deveu ao método de Kardec. Não tem relevância o fato de ser ausente das obras dele a designação codificador. Essa percepção demandaria distanciamento histórico. Chamá-lo assim só o diminuiria se excluísse seus esforços de coleta e coordenação metódica do ensino espírita; mas no ato de codificar estão implicados o mérito e as escolhas pessoais do codificador, evidentemente determinantes. O caso é, pois, mais lexicográfico que doutrinário.
[2] Cf. O Livro dos Médiuns, 182. Revista Espírita. Nov/1861. Discurso aos espíritas bordeleses.
[3] Cf. Revista Espírita. Set/1867. Caráter da Revelação Espírita. Nota ao n. 45.
[4] Cf. Revista Espírita. Maio/1859. Cenas da Vida Privada Espírita. N.ºs 47 a 53.
[5] Cf. Obras Póstumas. Imitação do Evangelho, Paris, 14 de setembro de 1863.
[6] Cf. O Livro dos Médiuns, 167.
[7] E. N. Bezerra, 1.ª ed. Comemorativa do Sesquicentenário, F.E.B., 2006, p. 202.
[8] J. Herculano Pires, 54.ª ed., L.A.K.E., 1994, p. 144.
[9] Cunha, C. & Cintra, L. F. L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Cap. 11. 3.ª ed., 7.ª impressão, Nova Fronteira, 2001, p. 283.
[10] Provavelmente, o Sr. Adrien, membro da S.P.E.E. Cf. Revista Espírita. Dez/1858: “Estivemos juntos nos teatros, bailes, passeios, hospitais, cemitérios e igrejas; assistimos a enterros, casamentos, batismos e sermões; em toda parte observamos a natureza dos espíritos que ali vinham reunir-se, estabelecendo conversação com alguns deles, interrogando-os e aprendendo muitas coisas que tornaremos proveitosas aos nossos leitores”.
[11] J. Herculano Pires, 18.ª ed., L.A.K.E., 1994, p. 176. Negrito meu. Obs.: A forma vit é 3.ª pessoa do singular do passé simple, il vit: ele viu. Kardec, porém, usou o pronome impessoal on, que equivale ao nosso a gente, embora também possa indicar indeterminação do sujeito: viu-se, razão pela qual divergem os tradutores entre “a gente o viu / nós o vimos / vimo-lo” e “foi visto”. Concordo com Herculano Pires: “vimo-lo”. Se havia dois candidatos a praticante da ação verbal (Kardec e/ou o médium), por que o mestre indeterminaria o sujeito? O mesmo se verifica no número seguinte, o n. 170. Escreve Kardec, acompanhado de outro médium e sobre diferente espírito: “Cela dit, on le vit aller se placer...”; “Dito isto, vimo-lo ir colocar-se...”. Herculano, desta vez, salteia a expressão: “Dito isso, foi se colocar...”. G. Ribeiro acresce palavra inexistente: “Dizendo isso, o médium o viu ir colocar-se...”.
[12] Cf. Revista Espírita. Dez/1858. Conversas Familiares de Além-Túmulo. “Uma Viúva de Malabar” e “A Bela Cordoeira”.

Fonte: Ensaios da Hora Extrema - http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2013/12/as-mediunidades-de-kardec.html

Será que Kardec leu Darwin?

Por Ademir Xavier 

Sabe-se bem que a segunda metade do século 19 foi uma época extraordinária. Invenções que marcariam o progresso no século seguinte, descobertas científicas inigualáveis que modificariam a visão científica do mundo e conquistas humanas nunca imaginadas foram então realizadas. No palco de revelações em que se converteu a Europa da época, o surgimento do Espiritismo em 1857 com a publicação de "O Livro dos Espíritos" e a publicação de "Sobre a Origem das Espécies por meio de seleção natural" por Charles Darwin (1809-1882) em 1859 contam como "algumas" das realizações notáveis.

Em um artigo recente (1), Paulo Neto analisa o argumento corrente de que Kardec antecipou Darwin, o que é comum se ouvir nos meios espíritas. Essa questão dá origem a uma pequena 'querela' (2) entre os que sustentam que Kardec antecipou Darwin e os que acham o contrário, inclusive que Kardec teria feito uso dos trabalhos do emintente cientista inglês. Para o autor do artigo citado:

Ficamos boquiabertos, tamanha a nossa surpresa diante de tal infirmação, pois, para nós, foi Kardec quem se utilizou da teoria de Darwin, conforme iremos demonstrar.

E, na conclusão do artigo:

Para nós, foi Kardec que se aproveitou da teoria da evolução das espécies de Darwin para voltar com o assunto e, como já havia suporte científico, os Espíritos foram mais explícitos na questão, reformulando o que disseram anteriormente, para afirmarem sobre a evolução do espírito através do reino animal.

Em que consiste a demonstração proposta? Consistiu sumariamente em comparar trechos da 1a edição de 'O Livro dos Espíritos' (LE, a saber a questão #127) e a questão #607 que reproduzimos abaixo: 

607. Dissestes (190) que o estado da alma do homem, na sua origem, corresponde ao estado da infância na vida corporal, que sua inteligência apenas desabrocha e se ensaia para a vida. Onde passa o Espírito essa primeira fase do seu desenvolvimento? 

“Numa série de existências que precedem o período a que chamais humanidade.”

Essa resposta é comparada à da questão #127 da primeira edição onde o estado da 'alma do homem' não é identificado como tendo migrado entre outras espécies. No que segue abaixo, tecemos alguns comentários para mostrar que a questão é muito mais complexa do que se pode imaginar tão só a partir da comparação dos textos propostos.

Alguns comentários relevantes

O significado do termo 'alma do homem' pode ter evoluído da primeira para a segunda edição. No primeiro caso, ela pode se referir à alma do homem como ser encarnado e dispondo de consciência plenamente desenvolvida para o estado da 'humanidade';

A sugestão de influência das ideias de Darwin na obra kardequiana não tem respaldo em evidência alguma. Pelo contrário, pode-se dizer de forma segura que a ideia de que as espécies se modificavam era amplamente conhecida na época da primeira edição do LE na forma de um conjunto de teorias de transformismo de espécie. O que não se conhecida era o mecanismo pelo qual isso ocorreria;

A época em que essas ideias se desenvolveram não dispunha de meios de comunicação como os que temos hoje. Segundo o prof. Silvio Chibeni (3), é bastante provável que Kardec não tenha tido acesso à obra de Darwin e que, portanto, sua opinião reflete o ponto de vista conhecido entre a elite intelectual francesa da segunda metade do século XIX;

Assim, o conhecimento de Kardec sobre a evolução pode totalmente ser compreendido no contexto do conhecimento da época, inclusive no momento da publicação da 1a edição.
Ainda segundo o prof. S. Chibeni (3): 

"Eu também suspeito, como você, que o Kardec não acompanhava a literatura especializada em biologia (ou história natural, como se chamava à época), especialmente de um país de língua inglesa. Além disso, o livro do Darwin que trata do homem é o 'The Descent of Man', de 1871. No 'The Origin of Species', ele evita falar no homem, ao propor a teoria da seleção natural (e note-se que essa teoria é que é a teoria importante e original de Darwin, não a evolução, que já era amplamente admitida)." (grifos meus)

Portanto, o que Darwin escreveu em 1859 na  "Origem das Espécies" apenas por inferência se aplicaria ao homem no contexto histórico da época. Que a ideia da evolução não era novidade então (inclusive no tempo da 1a edição) pode ser compreendido por inúmeros trabalhos posteriores sobre a história da evolução natural, trabalhos que, inclusive, sugerem fortemente que Darwin se escorou em outros (4). O próprio mecanismo da evolução foi co-descoberto pelo grande espiritualista inglês Alfred R. Wallace. O trabalho de Robert Chambers (1802-1871) , Fig. 1, por exemplo, causou um grande furor antes de Darwin. 


Fig. 1 Esta figura foi extraída do livro "Vestígios da História Natural da Criação" de Robert Chambers e mostra o modelo de desenvolvimento dos peixes (F), répteis (R), pássaros (B) dando origem aos mamíferos (M). O livro de Chambers foi publicado em 1844, demonstrando que a ideia da descendência entre espécies já era conhecida bem antes de 'O Livro dos Espíritos' e da 'Origem das Espécies'. Segundo o artigo 'Transmutation of species'. 

O que diz "A Gênese"

Em um texto posterior em "A Gênese" , de 1868, (Capítulo XI) podemos ler, no parágrafo 15:

Da semelhança, que há, de formas exteriores entre o corpo do homem e o do macaco, concluíram alguns fisiologistas que o primeiro é apenas uma transformação do segundo. Nada aí há de impossível, nem o que, se assim for, afete a dignidade do homem. Bem pode dar-se que corpos de macaco tenham servido de vestidura aos primeiros Espíritos humanos, forçosamente pouco adiantados, que viessem encarnar na Terra, sendo essa vestidura mais apropriada às suas necessidades e mais adequadas ao exercício de suas faculdades, do que o corpo de qualquer outro animal. Em vez de se fazer para o Espírito um invólucro especial, ele teria achado um já pronto. Vestiu-se então da pele do macaco, sem deixar de ser Espírito humano, como o homem não raro se reveste da pele de certos animais, sem deixar de ser homem.

Fique bem entendido que aqui unicamente se trata de uma hipótese, de modo algum posta como princípio, mas apresentada apenas para mostrar que a origem do corpo em nada prejudica o Espírito, que é o ser principal, e que a semelhança do corpo do homem com o do macaco não implica paridade entre o seu Espírito e o do macaco." (grifo meu)

Veja que, em 1868, Kardec considerava a possibilidade de transformação das espécies ainda como uma hipótese. E, mais para frente, no parágrafo 16:

"Admitida essa hipótese, pode dizer-se que, sob a influência e por efeito da atividade intelectual do seu novo habitante, o envoltório se modificou, embelezou-se nas particularidades, conservando a forma geral do conjunto (nº 11). Melhorados, os corpos, pela procriação, se reproduziram nas mesmas condições, como sucede com as árvores de enxerto. Deram origem a uma espécie nova, que pouco a pouco se afastou do tipo primitivo, à proporção que o Espírito progrediu. O Espírito macaco, que não foi aniquilado, continuou a procriar, para seu uso, corpos de macaco, do mesmo modo que o fruto da árvore silvestre reproduz árvores dessa espécie, e o Espírito humano procriou corpos de homem, variantes do primeiro molde em que ele se meteu. O tronco se bifurcou: produziu um ramo, que por sua vez se tornou tronco.  

Como em a Natureza não há transições bruscas, é provável que os primeiros homens aparecidos na Terra pouco diferissem do macaco pela forma exterior e não muito também pela inteligência. Em nossos dias ainda há selvagens que, pelo comprimento dos braços e dos pés e pela conformação da cabeça, têm tanta parecença com o macaco, que só lhes falta ser peludos, para se tornar completa a semelhante." (grifos meus)

Ora, em nenhum desses trechos transparece a ideia da seleção natural, mas, os conceitos estão de acordo com o que era conhecido antes de Darwin, ainda no campo das hipóteses. Portanto, é bastante claro que Kardec não leu nada de Darwin, mesmo em 1868. Também é de estranhar que esses trechos não tenham sido citados no trabalho (1). O assunto é, portanto, bem mais complexo do que a simples comparação de trechos limitados pode permitir.

Uma razão importante para considerar a falta de consideração de Kardec por essas teorias modernas em sua época era, provavelmente, a sua falta de tempo e a quantidade de trabalhos acumulados com a codificação (3).

Ressaltamos ainda que o Espiritismo é uma das poucas doutrinas religiosas que aceitam abertamente a noção de evolução e o mecanismo de sua operação, sustentando a proposta de que esse mecanismo serviria de base ao desenvolvimento do espírito.

Referências e notas

(1) Revista Espiritismo & Ciência nº 108. São Paulo: Mythos Editora, nov/2013, p. 18-22. Uma versão em PDF deste trabalho pode ser baixada aqui.

(2) No caso, esse ainda é um debate de reduzida importância frente a outros temas centrais do Espiritismo.

(3) Comunicação particular com Silvo Chibeni.

(4) Personalidades como: J. B. Lamarck (1744-1829), T. Malthus (1766-1834), Comte de Buffon (1707-1788), A. R. Wallace (1823-1913, praticamente um "co-descobridor" da seleção natural), E. Darwin (1731-1802), C. Lyell (1797-1875), J. Hutton (1726-1797) e mesmo G. Curvier (1769-1831) exerceram influência considerável sobre C. Darwin, assim como Robert Chambers.

Fonte: Blog "A Era do Espírito" - http://eradoespirito.blogspot.com.br/2013/11/sera-que-kardec-leu-darwin.html

domingo, 8 de dezembro de 2013

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

[VÍDEO] - Palestra "O Espírito do Espiritismo - O Legado de Kardec"

Apresentação de Ricardo Sardinha

Até que ponto a sua "fé raciocinada" é capaz de encarar a razão frente a frente em todas as épocas da humanidade ?

O mínimo que devemos a Allan Kardec é o RESPEITO pelo seu legado, e o que nós, espíritas, estamos fazendo com a semente que ele deixou aos nossos cuidados ?

Essas e outras reflexões fazem parte da palestra O Espírito do Espiritismo - O Legado de Kardec, proferida por Ricardo Sardinha em 02/10/2013 no Centro Espírita Luiz Sergio, do Rio de Janeiro. 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Kardec, a biografia – um livro bom de se ler

Por Dora Incontri

Não direi que o livro Kardec: a biografia é uma grata surpresa, porque quem escreveu a melhor biografia de Chico Xavier, até hoje, prometia escrever também a melhor do mestre de Chico e de milhões de espíritas brasileiros: Allan Kardec.

Por que considero ambas excelentes biografias? Porque são biografias mesmo e não hagiografias. (Para quem não sabe, hagiografia é história de santo, escrita dentro dos cânones da Igreja Católica). Marcel Souto Maior conta a história de um ser humano. De um grande ser humano, mas um ser humano. Um homem de bem, que é o que O Evangelho segundo o Espiritismo propõe como padrão ético. E conta muito bem contado.

Seu estilo é leve, sem cair na banalidade. É espirituoso e às vezes oportunamente irreverente, justo para não assumir um tom laudatório demais, o que acabaria com a sua credibilidade de biógrafo e jornalista investigativo. É um texto saboroso, ágil e que nos dá vontade de ler sem parar.

Souto Maior soube tratar de um assunto delicado, sem ferir nenhum partido; de um assunto sério, sem cair numa doutrinação massacrante e antipática.

Acima de tudo, porém, é fiel aos fatos. E sendo fiel aos fatos, a grandeza do personagem se destaca naturalmente, sem a mínima necessidade de usar uma batelada de elogios melosos.

Aliás, o que se sobressai na biografia escrita por Souto Maior é o Kardec da Revista Espírita. Quem está familiarizado com os 12 volumes da Revista, conhece melhor a personalidade de Kardec, seus embates, seu contexto, seus diálogos e discussões com adversários e aliados, com admiradores e detratores. O autor soube compor não só a partir da Revista, mas de outros documentos, um mosaico bem montado de Kardec, seu trabalho e sua época, que nos permite nos sentirmos lá, na França do século XIX.

Talvez para alguns, que prefeririam uma hagiografia, o fato de Kardec na biografia se irritar, se cansar, se alegrar e usar de uma fina ironia (e usava mesmo com todo o requinte do esprit francês) pode parecer algo humano demais. Mas grandes homens também se irritam e se cansam. Com essa constatação óbvia, em absolutamente nada sai arranhada a personalidade de Kardec e o que ele propôs como Espiritismo.

É claro que não se trata de uma obra filosófica e por isso não discute a fundo alguns pontos que poderiam ser polêmicos e assim não é um livro que sai dos cânones do Espiritismo brasileiro atual. Mas a postura crítica, racional e vigilante que Kardec tinha em relação à mediunidade é muito bem retratada e, mesmo sem querer, serve de alerta para esse movimento, que perde muitas vezes qualquer critério de análise do que supostamente vem do Além.

Quando me refiro aos cânones do Espiritismo brasileiro atual, estou falando de coisas que já estão assentadas entre nós e não me parecem que sejam tão fiéis a Kardec. Por exemplo, o termo “codificador”, que eu mesma usava, criada que fui nesse movimento, mas que tenho criticado ultimamente, pois ele não aparece em nenhuma obra da Kardec. Aparentemente, trata-se de algo criado aqui no Brasil e que ressalta o caráter do mestre como mero organizador de uma revelação pronta ou mero secretário dos Espíritos. Tenho pontuado que, apesar de sua modéstia, o próprio Kardec reconhecia em si mesmo um papel mais ativo e criativo nessa relação com os Espíritos. Diz ele em Obras Póstumas:

“Conduzi-me, pois, com os Espíritos, como houvera feito com os homens. Para mim, eles foram, do menor ao maior, meios de me informar e não reveladores predestinados.”

E na Gênese:

“O homem concorre para a revelação com o seu raciocínio e o seu critério; desde que os Espíritos se limitam a pô-lo no caminho das deduções que ele pode tirar da observação dos fatos. Ora, as manifestações (…) são fatos que o homem estuda para lhes deduzir a lei, auxiliado nesse trabalho por Espíritos de todas as categorias, que, de tal modo, são mais colaboradores seus do que reveladores, no sentido usual do termo.”

Ou seja, como estudei em minha tese de doutorado na USP, que virou depois o livro Pedagogia Espírita, um projeto brasileiro e suas raízes, Kardec criou um novo paradigma para conhecermos o mundo, que inclui uma dimensão espiritual. E esse método de estudar os fenômenos que evidenciam a imortalidade de alma é algo criado por ele e não pelos Espíritos. O livro de Souto Maior não desmente isso, aliás chega perto de demonstrar através de sua narrativa essa proposição que fiz. Mas não é seu objetivo, e nem poderia ser, discutir altas questões epistemológicas.

Um único reparo histórico que tenho a fazer no livro, um descuido talvez: Victor Hugo, quando se interessou pelas mesas girantes e manteve diálogos com os Espíritos, inclusive o de sua filha morta num afogamento, não estava em Paris, como afirma Marcel. O grande escritor francês estava exilado na ilha de Jersey, por conta de sua oposição ao governo de Napoleão III, que ele chamava de Napoléon, le petit (Napoleão, o pequeno).

Gostei particularmente dos dois últimos capítulos do livro, que estão muito bem articulados. O penúltimo trata do processo dos espíritas (aliás, num erro de digitação ou num engano de tradução aparece como “processo dos espíritos”), em que o juiz Millet destrata Amélie, já idosa, e lança de uma ironia agressiva e injusta contra a personalidade de Kardec. E Souto Maior nada responde. Mas insere no último capítulo a resposta final: um texto do mestre, que considero um dos mais bonitos, porque revela algo de sua intimidade e que só apareceu em Obras Póstumas, em que ele descreve a si mesmo, fazendo um balanço de sua vida de homem de bem. Essa é a melhor resposta para o Juiz furioso e para todos aqueles que ainda denigrem Kardec. Um texto em que o mestre se analisa com toda a simplicidade como um pessoa interessada em fazer o bem e promover a felicidade alheia. E foi isso o que fez com o Espiritismo.

Fonte: http://doraincontri.com/2013/11/11/kardec-a-biografia-um-livro-bom-de-se-ler/

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Jesus, o amor perfeito de todo o bem

09:19 Posted by Administrador , , , , No comments
Por Sergio F. Aleixo

Muito se fala em reforma íntima, ou interior. Que seja. A expressão, contudo, parece algo insuficiente a propósitos tão transversais como os do Espiritismo. Simples reformas não operam mudanças substantivas, cuja significação anime em definitivo o fomento de uma nova sensibilidade, que é, sem dúvida, a meta suprema do Evangelho do Mestre.

Os ensinos e a vida de Jesus em tudo se distanciam destes simulacros comportamentais, de meras exibições proselitistas, que as religiões do oportunismo ousam chamar de “conversões”. Há que considerar o sentido mais radical da mensagem genuinamente cristã, que se reporta a nossa mudança de mente, à passagem de nossos níveis de consciência a percepções mais apuradas do existir, mediante a compreensão da necessidade de enfrentarmos o coexistir segundo Jesus: aquilo que queremos que nos façam, devemos fazê-lo primeiramente aos demais, pois não há amor a Deus que não se faça amor ao próximo e vice-versa; do contrário, não haveria amor e, mais ainda: sem amor, já não haveria Deus.

Para tanto, são precisos movimentos de grande profundidade do ser imortal, que o conduzam para além da sua face animal, da mecânica física e mesmo da aparência perispirítica, e lhe proporcionem surpreender-se neste poder de constante transformação, fundamentalmente moral, por influência de nossa identidade perene em sua incorruptível transcendência, de divina natureza. Todos somos filhos do Altíssimo!

Claro está hoje que estes movimentos de grande profundidade no espírito não se verificam por graça, de um momento inusitado para outro de mero capricho. A evolução pela reencarnação é o processo natural que opera esta transformação gradativa da consciência imortal dos seres, em âmbitos de especialíssimos estados, cada vez mais identificados com nossa filiação indissimulável, até que nos sobrevenha aquela plenitude definitiva, destinada às criaturas em sua realizável perfeição: a angelitude, da qual é impossível decairmos.

Frio automatismo cósmico? De forma nenhuma. É a Providência mesma que se nos manifesta. Ao demais, dizem os espíritos superiores da codificação kardeciana que Jesus Cristo é o tipo mais perfeito que o próprio Deus nos ofereceu para guia e modelo. E, de fato, não se trata de um guia cego, um modelo distante de nossas vidas tão precárias. Ele efetivamente conhece o caminho pelo qual nos enveredou com sua entrada neste mundo de sangue e água, pele e ossos; padecendo a carne, mas de contínuo vivificado no espírito. Ele veio para dar testemunho da verdade, e esta mais não é do que a essência espiritual da vida.

No mundo teremos tribulações, mas tenhamos bom ânimo, pois o Mestre é vitorioso deste sistema de coisas pelo menos há milhões anos. E não se distraiu com nossas brincadeiras de cabra-cega à margem do caminho; veio até nós para que o trilhemos com decisão e sem vendas. Só conheceremos a verdade e esta somente nos tornará livres se permanecermos na doutrina de Jesus, aquele que encarnou o amor perfeito de todo o bem, assumindo para si próprio que o que se faça ao menor de seus irmãos a ele mesmo estará sendo feito. Ao menos uma vez, o mais simples foi visto como o mais importante.

Fonte: Blog Ensaios da Hora Extrema - http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2012/12/jesus-o-amor-perfeito-de-todo-o-bem.html

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Dinâmica das mutações das estruturas mentais

20:04 Posted by Administrador , , 3 comments
Por Jaci Régis (*)

PREÂMBULO

Em 1848, Karl Marx e Frederich Engel lançaram, em Paris, o Manifesto do Partido Comunista, com o propósito de inaugurar uma nova fase para a humanidade, redescobrindo o valor da pessoa comum e pretendendo destruir a sociedade burguesa, embora ambos fossem burgueses. Nesse Manifesto eles afirmaram, prenunciando as mudanças radicais que propunham "tudo o que é sólido se desmancha no ar , tudo o que é sarado é profanado e os homens finalmente são levados a enfrentar(...)as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações com seus companheiros humanos".

O tempo era de propostas radicais para revolucionar, combater a injustiças, lutar pelo estabelecimento da ditadura do proletariado e uma sociedade sem classes sociais.

Marx criticou os filósofos que interpretavam mas não transformavam a sociedade. Era a filosofia da praxis, da atuação social.

Não importa se o sonho da sociedade comunista tenha aparentemente naufragado, mostrando que não basta uma excelente idéia, mas é preciso que existam pessoas capazes de, ética e eficientemente, colocá-la em prática. O que importa assinalar é que o mundo nunca mais foi igual, depois de Marx.

Em maio de 1855, o prof. Rivail começou uma nova e fascinante virada de sua vida. Diante dos fenômenos mediúnicos afirmou "vislumbrei naqueles fenômenos a chave do problema do passado e do futuro da Humanidade, tão confuso e tão controvertido, a solução daquilo que eu havia buscado toda a minha vida. Era, em suma, uma revolução total nas idéias e nas crenças existente."

Allan Kardec, certamente, não pode ser classificado entre os filósofos mais prestigiados da era moderna, como Kant, Hegel e outros, que desenvolveram o pensamento filosófico com enunciados sobre o idealismo, a crítica da razão, o comportamento, na tentativa de descrever o ser e a razão das coisas.

Entretanto, a partir de princípios muito antigos e mais ou menos difundidos, e sob o amplo relacionamento com os Espíritos, ele elaborou uma doutrina filosófica de praxis. Uma doutrina de transformação moral objetiva, na prática da caridade benevolente e benemerente e no resgate dos princípios de comportamento, da ética, da moral de Jesus de Nazaré, num momento em que as igrejas cristãs davam mostras de exaustão do seu domínio na cultura ocidental.

Sem o viez partidário e ativista do marxismo, Kardec baseou o sucesso de sua doutrina no impacto revolucionário que a comprovação científica da imortalidade produziria sobre a sociedade, com profundas modificações estruturais no pensamento individual e coletivo.

De raciocínio positivista e cartesiano, temperado pelo humanismo pestalozziano, o professor Rivail sonhou e anteviu a vitória do Espiritismo, enquanto produtor de novas estruturas mentais das pessoas, a partir das bases da cultura ocidental.

Passados 143 anos do lançamento da doutrina, certamente a revolução kardecista não aconteceu, mas a semente lançada pelo Espiritismo germinou e germina continuadamente. Foi graças ao seu trabalho que criaram-se condições para o desenvolvimento das pesquisas psíquicas que envolveram sábios e investigadores de renome cultural e científico.

Embora não esteja consolidado na cultura, podemos dizer que o mundo nunca mais foi igual depois de Allan Kardec.

Aliás, Kardec jamais teve a veleidade de produzir a transformação social. Analisando as reformas e revoluções que se sucederiam, dentro do aforismo "os tempos são chegados", ele afirmou que "O Espiritismo não cria a renovação social; a madureza da humanidade é que fará dessa renovação uma necessidade. Pelo seu poder moralizador, por suas tendências progressistas, pela amplitude de vistas, pela generalidade das questões que abrange, o Espiritismo é mais apto do que qualquer outra doutrina para secundar o movimento de regeneração, por isso é ele contemporâneo desse movimento"( A Gênese)

Na verdade, Allan Kardec abriu uma nova visão da realidade humana, revelando a existência funcional de uma humanidade espiritual, movendo-se ora no plano extra físico, ora no plano físico, dando novo significado para a vida , livre do misticismo e das fantasias sobre a natureza humana. 

Porque essa será a base da nova sociedade mundial dos próximos séculos. Esta resultará do dinamismo das mutações, num leque de contribuições dos vários setores da cultura, a se entrelaçarem complementarmente numa nova ética – provavelmente uma composição da doutrinas de Jesus de Nazaré, Buda, Confúcio, Maomé e outros tantos semeadores de luzes, de todos os quadrantes. 

Para ajudar na construção desse novo momento é que Kardec quis preparar o Espiritismo. 

2. TRABALHO DE KARDEC

"A princípio, eu só tinha em vista instruir-me. Mais tarde, quando vi que aquelas comunicações um conjunto e tomavam as proporções de uma doutrina, tive a idéia de publicá-las para que todos se instruíssem". Essas palavras de Kardec (Obras Póstumas - Minha Primeira Iniciação no Espiritismo) mostram como ele desenvolveu seu trabalho de elaboração da doutrina espírita.

É verdade que Kardec fez um trabalho solitário e pessoal.

Na biografia publicada na edição de maio de 1869, da Revista Espírita, a primeira não redigida por ele, o biógrafo afirma que "ele era só!....". No discurso à beira do túmulo, Camille Flammarion, disse que ele "despertou rivalidades; fez escola sob uma forma um tanto pessoal..." Na Revista de junho do mesmo ano, está a informação de que "até hoje a Revisa Espírita foi essencialmente obra e criação do sr. Allan Kardec, como aliás todas as obras doutrinárias que ele publicou."

Ele começara a institucionalização do Espiritismo, em torno de sua pessoa, com a publicação da Revista Espírita, em janeiro de 1858 e com a fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, em abril do mesmo ano.

Sobre a Sociedade ele escreveu em 1º de janeiro de 1867:"A sociedade de Paris foi um foco permanente de intrigas urdidas por aqueles que se diziam meus partidários e que, agradando-me na frente, me ultrajavam pelas costas".

Comentando sua decisão de editar a Revista Espírita e tendo de fazê-lo sozinho e por sua conta ele disse "Reconheci mais tarde que tinha sido uma felicidade eu não haver encontrado financiador, porque fiquei mais independente, ao passo que um estranho poderia ter querido impor-me suas idéias e sua vontade, entravando-me o andamento do trabalho. Sozinho não tinha que prestar contas a ninguém por mais pesada que fosse minha tarefa, com o trabalho".

Assinalo esses fatos para que entendamos como surgiu a doutrina e o projeto que seu fundador tinha para seu desenvolvimento e consolidação.

3. PARADOXOS E NUANCES

É também verdade que Kardec teve dificuldade para explicitar claramente seu pensamento, não por falta de talento, mas de linguagem adequada.

Embora objetivo, o pensamento espírita que Allan Kardec desenvolveu, de modo algum é simplista. Ao contrário. Exige reflexão e não adesão de crença.

Mas, ao se tornar uma doutrina de fé raciocinada, o Espiritismo lançou seu primeiro paradoxo, pois quando se racionaliza para ser verdadeira, a fé já extrapola o conceito intuitivo que a define, cuja sentença mais apropriada é sem dúvida a "crê ainda que absurdo", pois a fé, enquanto fé não procura razões.

Da mesma forma, a sutileza das interfaces de pensamento são constantes no Espiritismo de Allan Kardec, como na frase abaixo, tirada do discurso de 2 de novembro de 1868: 

"as reuniões espíritas devem ser feitas religiosamente, sem que se tome, por isso, 

como assembléias religiosas".

Eis aí uma questão da Lógica. Se as sessões devem ser feitas religiosamente, logo, diria a lógica, são reuniões religiosas. Mas Kardec diz que não e que a nuança é bem caracterizada.

Fazemos essas ponderações para mostrar que para entender e seguir o pensamento espírita é necessário tirocínio e estrutura mental capaz de perceber as nuances, viajar na busca de significados específicos, em meio a um mar de palavras e expressões consagradas com sentido muito definido.

4. DIRETRIZES PARA O FUTURO

Na Revista Espírita de dezembro de 1868 Kardec publicou a Constituição do Espiritismo, depois reproduzida em Obras Póstumas. Nela ele estabelece uma série de diretrizes para o futuro da Doutrina. 

O capítulo Dos Cismas, é uma firme diretriz para o futuro do Espiritismo. 

Comentando esse capítulo J. Herculano Pires escreveu o seguinte: "Kardec reafirma, nesse trabalho, todas as posições fundamentais da Doutrina Espírita que  a caracterizam desde o início: uma doutrina aberta , estruturada sobre a tríade científica da observação, da experimentação e da pesquisa, avessa ao dogmatismo e ao misticismo e, portanto, à estagnação, confiante na capacidade humana sempre crescente de conhecer e por isso mesmo infensa também ao dogmatismo materialista."

Eis aí a questão, Kardec confiava na capacidade humana sempre crescente de conhecer . Ou seja, ele previu ou queria um tipo de adepto com a necessidade e a disponibilidade de conhecer, mudar, crescer.

Ele mesmo defrontou-se, durante a elaboração do Espiritismo, com muitas vertentes e linhas de pensamento que seguiam paralelas ao seu trabalho. Por isso, considerando que ele era o fundador da teoria espírita, declarou que tinha o direito de estabelecer as premissas da unidade da Doutrina.  

Vejamos o que ele diz a respeito do caráter evolutivo do Espiritismo.

A AFIRMAÇÃO

"A Doutrina é imperecível, sem dúvida, porque se baseia nas leis  da Natureza  e  porque, melhor  que  qualquer outra corresponde às legítimas aspirações dos homens. "

FICAR DENTRO DE IDÉIAS PRÁTICAS

"Não sair do círculo das idéias  práticas. Se  é exato que a utopia de ontem muitas vezes é a verdade de amanhã, deixemos que o  amanhã  realize  a utopia de ontem, mas não dificultemos  a  Doutrina  com princípios  que  seriam  considerados quimeras e  rejeitados  pelos  homens positivos."

O PROGRAMA

"O  programa da Doutrina só será invariável quanto  aos  princípios que  passaram  a  verdades  comprovadas;  quanto  aos  outros,  ela  só  os admitirá, como  sempre  tem  feito,  a título de  hipóteses  até  que  sejam confirmados.  Se  lhe demonstrarem que está errada em algum ponto,  ela  se modificará nesse ponto."

A RAZÃO

"No  estado de imperfeição de nossos conhecimentos, o que  hoje  nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdade, devido à descoberta de novas leis. Isto acontece na ordem moral como na ordem física. E é  contra esta  eventualidade  que  a  Doutrina  nunca  pode  estar  desprevenida."

O PRINCÍPIO PROGRESSIVO

"O princípio progressivo que inscreveu em seu código será a salvaguarda de sua perpetuidade.  E  sua  unidade será mantida  precisamente  porque  ela  não repousa sobre o princípio da imobilidade. A imobilidade, em lugar de ser uma força, torna-se causa de fraqueza e ruína para os que não seguem o movimento geral. Rompe a unidade, porque os que  desejam ir para a frente separam-se dos que se obstinam em ficar  para trás."

MUDANÇA NO TEMPO CERTO

"Entretanto, embora seguindo o movimento progressista, é mister fazê-lo com prudência e evitar entregar-se às cegas aos devaneios, utopias e  novos sistemas.  Importa fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde e com conhecimento de causa."

AS DIRETRIZES

"Por ela não se deixar embalar por sonhos irrealizáveis no presente, não se segue que deva imobilizar-se. Apoiada exclusivamente em leis naturais, não pode variar mais do que essas leis, mas se uma nova lei for descoberta deve juntar-se aos demais." 

"Não deve fechar-se a  nenhum  progresso, sob pena de suicidar-se. Assimilando  todas  as  idéias reconhecidamente   justas,  de  qualquer  ordem  que  sejam, físicas ou metafísicas, nunca será ultrapassada, e esta é uma das principais garantias de sua perpetuidade." 

Vejamos, em resumo, o que Kardec exige do Espiritismo: 

NÃO IMOBILIZAR-SE  

NÃO SAIR DO CÍRCULO DAS IDÉIAS PRÁTICAS  

NÃO DESDENHAR NENHUM PROGRESSO  

ASSIMILAR TODAS AS IDÉIAS RECONHECIDAMENTE JUSTAS  

SEGUIR O MOVIMENTO PROGRESSISTA COM PRUDÊNCIA PARA EVITAR ENTREGAR-SE ÀS CEGAS AOS DEVANEIOS, UTOPIAS E NOVOS SISTEMAS. IMPORTA FAZE-LO A TEMPO, NEM MUITO CEDO, NEM MUITO TARDE E COM CONHECIMENTO DE CAUSA.  

APOIAR A DESCOBERTA DE NOVAS LEIS TANTO DE ORDEM MORAL QUANTO FÍSICA. 

5. CRÍTICA À PROPOSTA DE KARDEC

Não me deterei no exame dos processos indicados por Kardec para a manutenção da atualidade do Espiritismo. Outros o farão. Meu intuito é analisar a validade e a possibilidade da proposta em si mesma. Isto é, o que significa criar uma doutrina cujas idéias possam evoluir, progredir, negar-se e reafirmar-se?

A proposta de Kardec é um projeto possível ? Será que é possível manter uma disponibilidade mental e existencial capaz de suportar as mudanças?

As diretrizes acima expostas mostram várias facetas do pensamento do fundador da doutrina.

Em primeiro lugar, ao afirmar que a doutrina evoluiria com as idéias reconhecidamente válidas, no campo físico como no moral, ele, de certa forma, desvincula esse progresso da sua anterior afirmativa de que as mudanças dependeriam da confirmação universal dos Espíritos. 

Talvez o amadurecimento de seu convívio diário com os Espíritos e com os espíritas, o tenha convencido de que seria muito difícil universalizar o projeto mediúnico como base essencial do Espiritismo .

Por isso preferiu que a Doutrina se organizasse em núcleos, como espécie de "observatórios do mundo invisível", que produzissem idéias, pesquisas e propostas razoáveis e concretas. Daí olhar o desenvolvimento da ciência, quer dizer de todos os segmentos da cultura, como coadjuvantes ou mesmo produtores do progresso doutrinário. Isso porque percebeu que a velocidade das mudanças logo tornariam algumas proposições senão ultrapassadas, mas deficitárias.

Além disso, acreditou que a cada 25 anos, um quarto de século, haveria tanta mutação no conhecimento humano que a doutrina, em congressos orgânicos, analisaria o resultado das pesquisas e incorporaria as que fossem compatíveis e lastreadas. O espaço de 25 anos seria um período muito bom para que não se precipitassem mutações que não teriam a resistência do tempo ou que a pesquisa não validasse.

Pelos cálculos de Kardec, considerando que a elaboração do Espiritismo por ele proposta foi iniciada em 1857, já teríamos realizado 5 congressos constitutivos.

Essa possibilidade de reunir e debater os princípios doutrinários, humanizava a doutrina e a retirava da tutela total dos Espíritos , mas não desprezava ou descartava a participação deles. Ao contrário, pois os Espíritos são parte essencial da estrutura doutrinária. E isso porque, sendo os princípios do Espiritismo parte da natureza, evoluiriam com o conhecimento mesmo dos fundamentos da natureza, seja pelos desencarnados, seja pelos encarnados.

Daí ser válida a questão que levanto.

Kardec ao propor esse processo de atualização, teria em mente que as gerações de espíritas seriam formadas por pessoas capazes perceber, analisar e adquirir novos conhecimentos, adequá-los à doutrina, sem descaracterizá-la.

Em que tipo de adepto pensava ele?

Exigiu que este fosse suficientemente capaz de não se fossilizar e manter-se dinamicamente a par do progresso. Ou seja, não imaginava pessoas conservadoras, medrosas, sem ousadia.

E eu pergunto, Kardec não teria sido ingênuo? Não teria criado uma impossibilidade?

Vejamos as posições de J. Herculano Pires que, em sua obra Agonia das Religiões, diz, no Capítulo IX, intitulado "Dúvida e Certeza":

"No Espiritismo a dúvida é considerada como condição necessária à busca da verdade.
Kardec a aconselha como método de controle das manifestações mediúnicas e de estudo dos princípios doutrinários.
A crítica se torna, assim, elemento básico da filosofia e da prática espírita. Mas é evidente que deve ser exercida por pessoas que tenham condições de cultura e bom senso para criticar." 

6. O ESPIRITISMO BRASILEIRO

Tudo o que acima foi dito representa o ideal, o Espiritismo projetado por Kardec, mas não é o Espiritismo real, o que existe e influencia as pessoas.

Com a falência do movimento espírita na Europa e com a sua pouca repercussão na América, o Brasil é o lugar onde nominalmente ele floresceu.

Entretanto, desde o início, o movimento que se organizou em torno da doutrina, não resistiu à pressão da cultura brasileira. A criação do jornal Echo D’Além Túmulo, em 1863, por Luiz Olympio Telles de Menezes, na Bahia, mostra claramente essa tendência e a mistura que desde então cercou a doutrina no país.

É difícil imaginar que, tornado uma doutrina popular, a massa que acorreu aos Centros tivesse condições para entender o projeto audacioso que acima mencionei. 

Movidos pelas suas convicções, os iniciadores do movimento espírita brasileiro, esquematizaram o pensamento espírita, simplificando-o para, de certa forma, adequa-lo ao modelo de culpa e castigo do cristianismo. Essa simplificação transformou o Espiritismo numa crença espiritualista baseada na lei de talião, mistificada como lei de causa e efeito, dentro de uma visão estrita e confessional. Todo o movimento se baseou nessa perspectiva de pagamento de dívidas do passado e a reencarnação passou a instrumento de punição divina.

Na verdade, podemos afirmar a existência de um "Espiritismo Brasileiro". Pois o Espiritismo real, que se instalou no Brasil, há de ser diferenciado como uma derivante do Espiritismo kardecista. 

A doutrina propriamente dita, as idéias, ficaram para trás e, no vácuo dessa desistência, infiltraram-se com facilidade os conceitos do catolicismo e modos do protestantismo. Tanto que o livro básico do Espiritismo brasileiro é o Evangelho segundo o Espiritismo, que embora não sendo, como não é, um livro tipicamente religioso, mas uma análise prática de textos esparsos do Novo Testamento, foi tomado como um livro sagrado ou uma substituição espírita dos evangelhos canônicos.

É notório que as diretrizes de Allan Kardec, tanto no projeto 1868 quanto na Constituição, foram desprezadas. O Espiritismo tomou feição de movimento religioso, consolador, provedor de benefícios.

Esse imobilismo impede de ver que não existe uma dicotomia, um confronto entre o ser a divindade, como tem sido apregoado e estabelecido, mas que a criatura humana é parte integrante e inteligente da obra divina.

O Espiritismo brasileiro, na prática, mantém intacta a falsa compreensão que divide a vida entre o profano e o divino, que as religiões de todos os tempos acentuaram como forma de domínio e poder, uma vez que se situaram como intermediárias e provedoras da salvação, e do perdão divino. Para elas tudo de bom provém ou está no Além, lugar de julgamento.

7. ESPIRITISMO BRASILEIRO NÃO É REVOLUCIONÁRIO

Nesse contexto, o Espiritismo deixou de ser uma proposta revolucionária, para conformar-se com o papel de reformador de estruturas arcaicas, trabalhando sobre elas mesmas. Pois a visão espírita ficou muito parecida com a visão cristã comum ao embalar-se com promessas do profetismo, pelas quais a intervenção divina é que muda as coisas, retirando do ser humano a iniciativa e o mérito das transformações sociais e do pensamento.

Por fim, condenará o Espiritismo ao papel de espectador e não de agente ou pelo menos de agente coadjuvante , nas mudanças que se processam diariamente no cenário mundial.

Ao lado de pessoas de excelente capacidade intelectual, principalmente entre a elite de iniciadores, perfilaram-se milhares de criaturas de pouca cultura, sem uma estrutura mental positivamente progressista. 

Mas tanto os intelectuais como os menos intelectuais, uniram-se no discursos evangélico e obscurantista que reduziu, afinal, o Espiritismo a uma religião ou quase religião porque, mesmo sem qualquer justificativa prática, continuaram afirmando-lhe os caracteres filosóficos e científicos.

Basta verificar a história do Espiritismo brasileiro para constatar que ele afastou-se do pensamento de Kardec, para criar um misto de kardecismo e evangelismo, engessando-se numa visão conservadora de homem e de mundo, sem desenvolver um processo dinâmico de entendimento progressivo..

O perfil do movimento e dos adeptos é bem específico.

Diz-se que a maioria "veio pela dor", que é elevada a única forma de redenção dos pecados praticados no passado. Substituiu-se o "pecado orignal"da Igreja, pelo "pecado originário do passado", no mesmo entendimento da Justiça Divina e da vida terrena.

A adepto virou crente. Ao iniciar-se no Espiritismo mantém praticamente sua estrutura mental adquirida nas religiões, pois aqui encontrou modificações apenas pontuais, dada a forma como o ensino e doutrina foram transmitidas e a maneira como as instituições foram criadas.

Uma clara perspectiva desse perfil pode ser encontrada na frase "A vida é mais importante que a verdade" que me foi dita pelo médium Francisco Cândido Xavier, transmitindo, segundo disse, idéia do Espirito André Luiz.

Nesse entendimento, manter a vida, física e mental das pessoa, consola-las, dar-lhes esperanças é muito mais importante do que fazê-las pensar, discutir idéias, recriar imagens e seguir o próprio caminho.

Manteve-se o mesmo sentido da brevidade e do peso da vida terrena, encarada como uma forma de castigo e de exílio.

Todo o esquematismo do Espiritismo brasileiro gira em torno dessa perspectiva para a vida terrena, mantendo o pensamento mágico e a posição de medo e obscurantismo diante da vida e da atuação da Lei divina.

Daí,a exaltação da mediunidade e a elevação dos médiuns à posição de sacerdotes e porta-vozes do divino, numa espécie não consciente de santificação dos mortos e de desprezo pelo esforço humano, uma vez que toda a sabedoria emanaria do Além.

Como no cristianismo, a vida terrena é considerada um "vale de lágrimas" e o que cada um deve fazer é sofrer suas dores, como prêmio divino para a redenção futura. A existência ficou, praticamente, sem outro sentido senão o de ressarcir dívidas, dada a quase eterna indisposição das criaturas para o bem.

Então, quando estamos tratando de atualizar a doutrina, na verdade estamos tentando reencontrar sua estrutura criada e pensada por Allan Kardec. É a partir daí que devemos encetar nosso esforço, o que em relação à maioria esmagadora do espiritismo brasileiro, representa recriar a doutrina.

8. DINÂMICA DAS ESTRUTURAS MENTAIS

Allan Kardec elaborou a Doutrina para um tipo de adepto capaz de mudar, de transformar, de aceitar o novo, sem desestruturar-se.

Uma exigência bastante difícil de ser aceita por um grande número, talvez a maioria das pessoas.

Porque, psicologicamente, as pessoas tendem a se acomodar, a ser conservadoras.

Cada pessoa, direi Espírito, para situar a construção dos conceitos através do tempo e encarnações, vai sedimentando conhecimentos e experiências Essa estrutura mental define a individualidade permanente, cerne, base, fundamento das personalidades que cada um de nós assume nas várias encarnações. E determina o perfil psicológico do ser.

É um processo complexo e desenvolve uma visão particular, um código com o qual o conjunto da vida é decodificado. Cria a própria e específica interpretação dos fatos, das idéias, a partir dessa maneira pessoal de olhar, sentir e perceber fatos e idéias.

As estruturas mentais se tornam, pois, consistentes, como fatores constitucionais do ser e vão sendo consolidadas:

a) pela força dos modelos culturais, insistentemente repetidos e mantidos, seja pela instituição familiar, pela classe social, pelos clãs, sobretudo pela crença religiosa, através processo evolutivo atemporal;

b) por convicções específicas que atendem à visão de mundo que cada um desenvolve por afinidades de afetos (perspectivas, sonhos) ou compensação (medos, angustias, etc.);

c) como forma de manter-se relativamente estável (mesmo na loucura) diante das incertezas naturais ou alucinadas.

Tais estruturas constitucionais, pertencem ao acervo espiritual e podem persistir encarnação após encarnação, com modificações pontuais, até que sejam abaladas por fatores variados.

Então, o abalo é assimilado ou rejeitado produzindo reações contraditórias:

a) às vezes as reações são violentas, agressivas, como recursos de salvaguarda da própria estrutura mental existente, surgindo condutas de confronto como medida de força e inibição da diversidade conceitual. São os choques religiosos, por exemplo, entre facções adversárias.

b) outras vezes, o ser desenvolve desvios conceituais, argumentação falaciosa para sustentar antigas convicções ou, também, pode simplesmente tornar-se indiferente negando-se a perceber os abalos da convicção nela permanecendo acomodado

c) não poucos entregam-se ao desalento e à descrença. Quando esse estágio move-se para uma busca de outras alternativas ou respostas, inicia-se um período de grande conturbação interior.

Abre-se um vazio existencial.

Medos, ansiedades estão na base desse processo de definição existencial. Mesmo nas mentes que possamos considerar razoavelmente sadias, subsiste, também, o medo de mudar.

A angústia do novo provoca um longo período de incertezas. Nem sempre a clareza de raciocínio é fator positivo no processo de mudança. Muitos apenas alcançam novo nível de acomodação mental. Refugiam-se numa determinada crença, seja espiritualista ou materialista e não chegam a elaborar uma nova visão de homem e de mundo.

Porque há uma diferença sensível entre a acomodação e a mudança. A mudança representa a descoberta, um novo caminho, um novo entendimento. A acomodação é uma forma sutil de manter as mesmas posições, com formas e modos meramente exteriores.

Além disso, a incerteza generalizada sobre as razões mais profundas da vida e a inevitabilidade da morte, desenham o quadro final desse complexo.

Mudar é, pois, um processo traumático.

Podemos, figurativamente, ilustrar esse processo na visão de uma árvore frondosa, cheia de folhas verdes no verão, que se desnuda e fica com galhos secos e nus, no outono e inverno, e que novamente refloresce e se enche de folhas verdejantes.

O primeiro momento é o tempo em que a pessoa está confiante e confortável com suas crenças, idéias, seu modo de ser.

O segundo momento é o tempo de transição, da dúvida, do questionamento, do abandono de crenças, idéias, acalentadas e muitas vezes muito sedimentadas.

O terceiro momento representa a recuperação das idéias, das crenças, em novo sentido, prisma e conceito.

Muitos temem o segundo momento, os galhos secos, a nudez das folhas, a exposição da alma ao incerto, à insegurança da transição e permanecem com suas velhas folhas, sem coragem, disposição ou necessidade de atravessar esse outono-inverno , esse trânsito da certeza para a incerteza em busca de novas certezas.

Entretanto, sem essa mutação a árvore fenece e não pode produzir flores e frutos.

Duro é o discurso da mutação, da mobilidade conceitual. 

Transcrevo as linhas de carta que recebi, num momento de transição de nossa vida espírita, de um ex-companheiro de doutrina, dotado de inteligência e trabalhador assíduo do movimento, ao se despedir, ausentando-se da luta que travamos:

A revisão de valores que você tem comandado e que eu, em bem reduzida parte cooperei, ganhou um ritmo para mim acelerado, acima da minha capacidade de apreensão. Em alguns momentos, tudo isso tem me confundido a mente. O que era não é, o que valia não vale mais. Olhar para trás significa auto-acusação. Aí vem o desconforto duro, porque foram muitos anos de empenho, trabalho e crença, que chamamos ideal. E pôr outras coisas nesse espaço não tem sido fácil.

É preciso advertir que essa flexibilidade mental, que se permite examinar as contradições e ouvir as incertezas internas e não desestruturar-se com a queda de crenças, mitos e idéias a que se consagrou durante muito tempo, não tem uma relação objetiva com escolaridade.

Faço esse apontamento porque serão inevitáveis as críticas ao elitismo ou à ironia sobre os "doutores" e outros mecanismos de que se servem intelectuais que, não obstante, combatem a intelectualidade, supondo que os "simples" seriam excluídos, sendo que denominam "simples" os que não possuem condições mínimas de entendimento e, por isso, engrossam as fileiras dos freqüentadores e - pasmem! - de certos dirigentes dos centros espíritas. 

Um pormenor importante nessa elucubração é que não se trata de pessoas "letradas" no sentido eufemístico ou pretensioso. Mas de pessoas capazes de refletir, de pensar e crescer, independente de títulos. É claro que, quando o país luta para livrar-se totalmente do analfabetismo, não seria a doutrina que louvaria a não-cultura.

É uma questão de amadurecimento e de assumir uma nova rota, quando a que se trilha se esgotou. 

Friso isso porque muitos não evoluem, desiludem-se. 

Não crescem, abandonam o caminho. 

Não questionam profundamente; reclamam , mascarando o sofrimento e o medo de mudar.

O princípio do progresso das idéias inclui a negação simbólica para abrir espaço ao debate e à crítica, fertilizando as idéias.

Como afirmei, existe uma tendência à acomodação no processo de aprendizagem. E o progresso no que tange ao pensamento espírita é, sem dúvida, um processo de aprendizagem.

Como diria Mc Lhuan, referindo-se à escola dos tempos de mudança, que o aluno deveria saber aprender, desaprender e reaprender, dada a mutação constante dos fatores.

Na verdade, é preciso abrir um parêntese, para afirmar, segundo meu entendimento, que a mudança de paradigmas é um processo secular, enquanto a mudança dentro dos paradigmas é um processo de mutação constante. Ou seja, só se muda um paradigma quando este esgotou sua capacidade de aceitar a reciclagem das idéias, por estar saturado de obscurantismo ou cristalizado de tal maneira que não possibilita nenhuma forma de questionamento.

Nesse sentido, não creio que os paradigmas estabelecido por Kardec estejam superados, mas que permitem ainda uma reciclagem de linguagem e de sentido, sem perder as ligações originais.

Como, pois, definir o adepto do Espiritismo?

Kardec disse :"Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas más inclinações" (O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XVII, item 4). Embora essa afirmativa tenha sido, quase sempre, entendida sob o aspecto moralista, verificamos que ela caracteriza o espírita como alguém que quer evoluir constantemente, inclusive moralmente. 

Encontramos no O Livro dos Espíritos, uma análise interessante sobre o progresso.

779. O homem tira de si mesmo a energia progressiva ou o progresso não é mais do que o resultado de um ensinamento?

O homem se desenvolve por si mesmo, naturalmente, mas nem todos progridem ao mesmo tempo e da mesma maneira; é então que os mais adiantados ajudam os outros a progredir, pelo contato social. 

780. O progresso moral segue sempre o progresso intelectual?

É a sua conseqüência, mas não o segue sempre imediatamente.

780-a. Como o progresso intelectual pode conduzir ao progresso moral?

Dando compreensão do bem e do mal, pois então o homem pode escolher. O desenvolvimento do livre arbítrio segue ao desenvolvimento da inteligência e aumenta a responsabilidade do homem pelos seus atos.

Nesses ensinamentos verificamos como o Espírito, ao longo de sua vida, desenvolve qualidades diferenciadas, retratando as estruturas psicológicas que constrói.

Idéias e sentimentos formam estruturas mentais, que são flexíveis ou inflexíveis, criando bloqueios a serviço da defesa do ser, sempre ameaçado pela incerteza e pelos acontecimentos. 

Lembremo-nos que o ciclo nascimento, vida, morte, repetindo-se ciclicamente, é um processo de incerteza constante, até que o Espírito tenha plena e razoável compreensão de sua natureza e perceba a vida terrena como instrumento de sua ascensão, mas que não o reduz a um organismo.

Isso explica as dificuldades e as repetições dos mesmos sintomas, erros e idéias, vida terrena após vida terrena, porque nascer, viver, morrer, não representam, por si mesmos, rupturas estruturais. São condições necessárias para preparar o Espírito para essas rupturas, sob o impacto de descobertas, abalos de crenças e outros fatores externos que mobilizem motivações internas, único caminho para verdadeiras transformações das estruturas mentais.

Daí, a confirmação de que as mudanças são iniciadas na reelaboração de idéias, timidamente assumidas, para depois se tornarem reais, exigindo uma unidade de tempo. 

Por isso, a diversidade de prontidão para mudar. 

Alguns estão abertos a isso pela assimilação de experiências e porque encontraram um caminho de aplicação da liberdade de pensar e reelaborar. 

Outros, retraem-se. Chegam, mesmo, a considerar novas idéias como sadias, excelentes para seus problemas e incertezas, mas titubeiam, hesitam e, muitas vezes, permanecem acomodados.

Por fim, há os que refutam, no momento em que vivem, qualquer possibilidade de mudar, mantendo inflexíveis suas estruturas e nem mesmo considerando a possibilidade de transformação.

O espírita que Kardec aspirava, precisa ensaiar a liberdade de pensar, suportar o medo da travessia, sem precipitação, mas sem relutância, num ritmo certo, pois as mudanças reais são amadurecidas e consubstanciadas. 

Não é fácil, por vezes, fazê-lo.

Mas é inevitável fazê-lo.

9. CONTUDO, É PRECISO MANTER-SE ATUALIZADO

Quando Galileu Galilei foi obrigado a desmentir-se publicamente sobre o movimento da Terra. Teria dito, entre dentes "mas se move...". Também, diante da realidade do movimento espírita, muitos poderiam crer que o serviço ao próximo, a consolação que o Espiritismo dá, confere-lhe uma autoridade e uma aura de credibilidade que não pode ser mudada, sob pena de frustrar as milhares de pessoas que buscam nele a reposta para seus problemas e dores.

Esse raciocínio é um sofisma que, se aceito, reduziria o Espiritismo, num prazo relativamente curto, a uma seita marginal, alternativa, como muitas que surgem e desaparecem.

Embora a afirmação de que a "a vida é mais importante que a verdade" pareça justa, em termos do cotidiano, ela é inócua e injusta ao longo do tempo. Principalmente se pretender cercear a busca da verdade como não apenas desnecessária, mas como instrumento da vaidade.

O Livro dos Espíritos é claro.

O conhecimento da verdade fertiliza o sentimento. Senão, transformaremos o consolo da doutrina, em apelo à conformação, ao aceitar como determinação divina e, portanto, irrevogável, todos os acontecimentos da vida terrena.

Se não negarmos o sentido punitivo da lei de causa e efeito, acabaremos por nos tornarmos esquematicamente deterministas, sujeitos ao destino e às condições que nos cercam.

A conformação como sintoma de aceitação de que forças mais altas nos dominam, cercearia todo o esforço de progresso, que poderíamos definir como a descoberta de leis naturais desconhecidas e a construção de novas formas de convivência, conforto e bem-estar.

Isso também nos cega diante da realidade. A hanseníase, por exemplo, é doença que persiste nos países subdesenvolvidos e está erradicada dos países desenvolvidos. Para justificar esse atraso, poderíamos usar o velho estratagema de que os Espíritos que aqui reencarnam ainda "precisam" dessa prova, enquanto os que lá encarnam já não necessitam desse aguilhão. A assertiva é um sofisma porque os habitantes dos países desenvolvidos não apresentam um comportamento ético sublimado, nem suas sociedades estão longe do crime, dos erros e da violência.

Nesse, como em outros casos, não precisamos criar uma explicação engenhosa para "salvar" a Justiça Divina. Em primeiro lugar, as condições sanitárias são básicas para o desenvolvimento de certas moléstias. Além disso, não dispomos de todos os elementos para fazer um julgamento realista das modificações do comportamento humano.

Devemos lembrar que coexistem, no fim do século vinte, esplendores científicos, tecnologias de ponta, projetos quase fantásticos para a informática, viagens interplanetárias, estudos adiantados sobre a natureza do universo, com a crença nas grandes cidades e países do primeiro e de todos os mundos, no vudu, na cartomancia, nas adivinhações e exotismos de toda espécie.

Esses segmentos oferecem a fantasia e a magia que milhares de pessoas cultuam no frenesi de resolver seus problemas sérios ou fúteis, através de sortilégios, rituais e práticas primitivas.

O Espiritismo precisa também definir o papel dos Espíritos na Doutrina Espírita. Aliás, Allan Kardec deixou bem clara a variedade dos graus evolutivos dos desencarnados, eliminando o fascínio sobre um suposto domínio ou sabedoria dos "mortos". Como ele, não podemos, sem dúvida, desprezar a participação dos espíritos na atualização e no progresso do Espiritismo. 

Afinal, a doutrina nos abre os horizontes de uma compreensão sem fronteiras entre a vida física e a vida extra física, no meio da qual estão os fenômenos da morte e do nascimento, ciclicamente.

Entretanto, essa comunhão deve ser feita sem deslumbramento e com recíproco respeito e compreensão dos fatores determinantes das estruturas mentais e morais de cada um.

O Espiritismo só tem, pois, um caminho se quiser contribuir para a mudança do processo vivencial humano: dinamizar idéias, pesquisar novos caminhos, ousar na procura de entendimento mais coerente com as idéias da Justiça divina e da própria existência de Deus, atuando positivamente no plano, na vida cotidiana, não apenas das pessoas, mas das coletividades

Kardec estabeleceu a forma dessa atualização que deve ser contínua e constante, sem pressa e sem atraso, no seu tempo, maduramente.

Nem utopias, nem prepotência.

Coerência e integração com a cultura em andamento.

Firmeza de princípios e flexibilidade de entendimento.

Fora disso cairá na repetição. Fechado ao progresso, imobilizando-se, ficará para trás, retendo em seu seio e alimentando suas fantasias, multidões retrógradas, sempre à espera da intervenção do oculto para fazer, por elas, o percurso que inevitavelmente terão de fazer, ainda que perdendo o ritmo e a oportunidade de crescimento.

10. DELIMITAR O CAMPO 

Kardec pretendeu que o espírita tivesse a mente científica.

Explico-me. Não quer dizer que ele desejou que todos os espíritas fossem cientistas. Mas que tivessem a mente como se fosse um deles, ou seja, capaz de aceitar que sempre se pode encontrar novos caminhos, penetrar mais a fundo em todas as coisas.

Um dos males que obstam o desenvolvimento do Espiritismo, é a pressuposição de que ele tem respostas para todas as questões.

Dada a impossibilidade de analisar, com base, as variadas e surpreendentes ações humanas, restou a prepotência de que se tinha um esquema pronto, um manual de respostas acabadas para cada tipo de problema.

Esse estratagema só serve para tumultuar as idéias e dispersar o trabalho de expansão da idéia espírita.

Precisamos lembrar que Kardec enfatizou que era "preciso não sair do círculo das idéias práticas," ou seja, evitar utopias, sonhos e pretensões eufóricas. 

Creio que o primeiro passo para criar adeptos capazes de atender às exigências do fundador da doutrina será delimitar o campo de atuação doutrinária. Quer dizer, escolher os tópicos, conhecimentos, em que a doutrina pode contribuir de maneira ponderável. Os conhecimentos humanos evoluíram de tal forma que o generalista, o que conhece tudo não sobrevive. 

O perigo, quando se defende a abrangência ilimitada do interesse espírita, será o dispersar de energias e abrir campo para afirmações exóticas ou sem fundamentos lógicos e científicos.

Não será mais produtivo aprender, como espíritas, a reflexionar, a filosofar?

Deveríamos, talvez, definir o Espiritismo como uma forma de humanismo, uma filosofia humanista, que se debruça sobre as relações do ser humano consigo mesmo e com o outro. Nesse campo, teremos ampla possibilidade de aprofundar nossos conhecimentos e pesquisas, pois isso envolve a natureza do ser em si mesmo, a comunicação mediúnica e a inserção do Espírito no processo evolutivo, a partir, naturalmente, da imortalidade. 

Recordemos as palavras de Kardec:

O que hoje pode ser verdade amanhã pode ser mentira.
O imobilismo não faz parte do pensamento espírita.
Não rejeitar novas idéias e descobertas.

Para que incorporemos o progresso aos nossos princípios não precisamos e nem devemos rejeitá-los, nem enxertá-los com cientificismos ou misticismos, idéias espiritualistas ou esotéricas. 

(*) Psicólogo Clínico, Presidente do Instituto Cultural Kardecista, de Santos, fundador e diretor do Jornal Abertura, presidente do Conselho Administrativo do Lar Veneranda, escritor, autor dos livros "A Mulher na Dimensão Espírita" (co-autoria), "Amor, Casamento e Família", "Comportamento Espírita", "Uma Nova Visão do Homem e do Mundo", "Caminhos da Liberdade", "Muralhas do Passado", Introdução à Doutrina Kardecista" e "A Delicada Questão do Sexo e do Amor" 

Fonte: http://www.cepainfo.org/index.php?option=com_abook&view=book&catid=7:porto-alegre-2000&id=20:dinamica-das-mutacoes-das-estruturas-mentais&Itemid=3&lang=pt