sexta-feira, 26 de março de 2010

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Espiritismo Literário

Por Glaucio Cardoso

Publicado em 1881, embora tendo surgido em forma de folhetim no ano anterior, a trajetória do defunto autor impressiona pela exposição crítica, irônica e por vezes até amarga que faz de sua vida. Muitas páginas já foram dedicadas a esse romance ímpar em nossa literatura, grande parte delas enfocando o distanciamento que a morte do narrador das memórias póstumas estabelece. Afinal, pode haver melhor ponto de vista para avaliar a vida e a sociedade que o de quem se encontra afastado de ambas?

Sem procurar penetrar ainda mais neste campo de análise da obra em questão, julgando que já há trabalhos excelentes sobre tal temática, passemos a avaliação de como Machado utiliza-se de idéias colhidas no Espiritismo para a composição das memórias de seu defunto autor.

Comecemos com a própria idéia da obra em si: um morto que escreve suas memórias a partir do além.

Se levarmos em conta que desde o século XVIII surgiram livros atribuídos a espíritos e que Machado foi contemporâneo da chegada dos primeiros livros espíritas no Brasil, poderemos concluir que a referência cultural é clara, não trazendo portanto nada de tão novo assim, mesmo na época em que é publicado, o que levou o temido Silvio Romero a classificá-lo como uma “espécie de espiritismo literário”¹.

Ironicamente, eu diria que machadianamente, Silvio Romero deu-nos a primeira chave para analisar o romance em questão: Espiritismo literário seria a criação ficcional apoiada ou inspirada em conceitos espíritas. O defunto autor das memórias póstumas é, portanto, a representação ficcional dos defuntos autores presentes nas obras espíritas desde os livros organizados por Allan Kardec.

Na explicação ao leitor, o narrador Brás Cubas evita “contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias” alegando que “Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra.” Para tanto ele argumenta que “O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado.”.

É um excelente recurso para a) fugir de explicações a respeito do processo da psicografia, i.e., o processo pelo qual o espírito transmite seu pensamento ao médium que o transcreve, tal processo foi amplamente descrito por Allan Kardec em O livro dos médiuns, constituindo um dos mais conhecidos fenômenos mediúnicos; no entanto, como são vários os gêneros pelos quais a psicografia se opera e como havia muita controvérsia sobre os mesmo à época é natural que Machado se abstivesse de o explicar com o estatuto de que melhor prólogo é o que menos diz, ou seja, só diz aquilo que realmente interessa à narrativa; e b) eximir o autor Machado de Assis de qualquer influência ou responsabilidade sobre a obra o que se entende quando levamos em conta que até então Machado havia cultivado uma escrita bem comportada e, por isso mesmo, aceita pelo público leitor de então; se como diz Ronaldes de Melo e Souza “O estatuto ambivalente do narrador desdobrado no encenador e no ator do drama de sua vida singulariza a situação narrativa dos romances machadianos de primeira pessoa” (Souza, 2006:139), não é absurdo julgarmos que tal singularização possui um efeito extremo no caso do romance de memórias póstumas e que, portanto, torna o autor tão distante do narrador que não se lhes pode indicar qualquer tipo de identidade em comum.

Exposição aguda da influência das idéias espíritas na escrita machadiana pode ser encontrada em outras passagens das Memórias. Por exemplo, quando o defunto autor fala de sua reação à morte da mãe: “Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto.” (Assis, 1999: 87).

Há perfeita simetria entre a passagem acima e outras tantas encontradas nas obras espíritas da época. Só para citar uma fonte primária, refletimos que as questões 919 e 919-a de O Livro dos Espíritos tratam especificamente do conhecimento de si mesmo indicando-o como o meio mais eficaz que o espírito, encarnado ou desencarnado, possui para julgar suas ações e confessar-se falho quando tal necessidade se apresenta.

Já na resposta à questão de nº 1000 encontramos a pergunta retórica “De que lhe serve [ao espírito], finalmente, humilhar-se perante Deus, se continua orgulhoso diante dos homens?” (Kardec, 2007: 547), o que nos leva à seqüência das reflexões feitas por Cubas:

Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência (...) Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar se, despintar se, desafeitar se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos, não há platéia. (Assis, 1999: 87-8)

Outro trecho da mesma resposta à questão 1000 aponta-nos mais um exemplo de como Machado exibe sua capacidade de torcer conceitos vários para que estes validem sua narrativa: “Só por meio do bem se repara o mal (...)” (Kardec, 2007 [1857]: 547). Este conceito de reparar o mal com o bem será desenvolvido em várias passagens de toda a Codificação Espírita, notadamente em O Evangelho Segundo o Espiritismo, sendo desnecessário que lhe façamos a transcrição. Parece-me ser este o conceito base para a “lei da equivalência das janelas”: Brás se julga perdoado por roubar a esposa de Lobo Neves restituindo uma moeda achada estabelecendo “que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência.” (Assis, 1999: 126).

Longe de pretender esgotar todas as possibilidades de diálogo entre as Memórias Póstumas de Brás Cubas e as idéias espíritas encerro esta parte com uma curiosidade que acredito proposital da parte de Machado: Brás Cubas nasce a 20 de outubro de 1805, pouco mais de um ano depois do nascimento de Allan Kardec em 03 de outubro de 1804, e morre em uma data ignorada do mês de agosto de 1869, sendo este também o ano de morte de Kardec, mais precisamente no dia 31 de março. Coincidência ou simples capricho de Humanitas?

1 - Citado por H. Pereira da Silva em “Sobre os romances de Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas)”. In: ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: SEDEGRA, 1960, p. 5-15.

Publicado no Recanto das Letras em 24/08/2008

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