quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Veemente Defesa de Kardec

Por Rogério Coelho

Quando o Espiritismo contava apenas três anos de idade, já provocava a fúria dos detratores de plantão, em especial daqueles que se encontravam aprisionados nas constringentes e sufocantes muralhas dos ancilosados dogmas medievais, sob o guante de deslavada ignorância...

Muitas vezes (como Jesus o fazia) Kardec respondia as provocações com o silêncio; outras vezes, dava largas a monumentais réplicas que impressionavam pelo poder de demolição das argumentações antípodas.

Em agosto de 1860, quando visitava sua cidade natal, o periódico Gazette de Lyon publicou um artigo de um jornalista que se identificou apenas com as iniciais “C.M.”, intitulado: “Uma Sessão Entre os Espíritas”, lavrado com requintes de leviandade, inverdades, incoerências e abundantemente tendencioso, no qual os espíritas eram chamados, entre outros epítetos de: “alucinados” envolvidos em mil formas de aberrações, “laicos” que romperam com todas as crenças religiosas, “ignorantes”, “ineptos”, “ridículos”, pertencentes exclusivamente à classe operária. Ao Espiritismo chamou de “loucura nova renovada das antigas”.

O artigo termina assim: “(...) Antigamente a Igreja era bastante poderosa para impor silêncio a semelhantes divagações; ela feriria – talvez – muito forte, é verdade, mas deteria o mal. (Evidentemente o articulista se referia às fogueiras inquisitoriais).

Hoje, uma vez que a autoridade religiosa é impotente, uma vez que o bom senso não tem bastante império para fazer justiça a tais alucinações, a outra autoridade (referia-se à autoridade civil constituída) não deveria intervir neste caso, e colocar fim a práticas das quais o menor inconveniente é tornar ridículos aqueles que com isso se ocupam?”.

Esse conjunto de aleivosias fez com que Kardec escrevesse a seguinte carta ao redator da Gazette de Lyon (naturalmente dentro do espírito do direito de resposta, que evidentemente foi escamoteado pelo redator) na qual podemos observar o brilho intenso da verve e inteligência do Codificador do Espiritismo, bem como a justificativa para que seu conterrâneo Camille Flammarion o chamasse “Bom senso encarnado”:

“Senhor,

Foi-me comunicado um artigo, assinado C.M., que publicastes na Gazette de Lyon, de 2 de agosto de 1860, sob o título: “Uma Sessão Entre os Espíritas”. Nesse artigo, se não fui atacado senão indiretamente, o sou na pessoa de todos aqueles que partilham as minhas convicções; mas isto não seria nada se as vossas palavras não tendessem a falsear a opinião pública sobre o princípio e as conseqüências das crenças espíritas, derramando o ridículo e a censura sobre aqueles que as professam, e que assinalais à vindita legal. Peço-vos permitir-me algumas retificações a esse respeito, esperando de vossa imparcialidade que, uma vez que crestes dever publicar o ataque, bem gostaríeis de publicar a minha resposta.

Não credes, Senhor, que o meu objetivo seja de procurar vos convencer, nem que vá restituir-vos injúria por injúria; quaisquer que sejam as razões que vos impeçam de partilhar a nossa maneira de ver, não penso em indagá-las, e as respeito se são sinceras; não peço senão a reciprocidade praticada entre pessoas que sabem viver. Quanto aos epítetos descorteses, não está nos meus hábitos deles me servir.

Se tivésseis discutido seriamente os princípios do Espiritismo, se a eles opusésseis argumentos quaisquer, bons ou maus, teria podido vos responder; mas toda a vossa argumentação se limita a nos qualificar de ineptos, e não me cabe discutir convosco se tendes erro ou razão; eu me limito, pois, a levantar o que as vossas assertivas têm de inexato, fora de todo personalismo.

Não basta dizer às pessoas, que não pensam como nós, que elas são imbecis: isto está ao alcance de qualquer um; é necessário demonstrar-lhes que estão erradas; mas como fazê-lo, como entrar no cerne da questão se não se sabe dela a primeira palavra? Ora, creio que é o caso em que vos encontrais, de outro modo teríeis empregado melhores armas do que a acusação banal de estupidez. Quando tiverdes dado, ao estudo do Espiritismo, o tempo moral necessário, e vos previno que dele é necessário muito; quando tiverdes lido tudo o que possa assentar a vossa opinião, aprofundado todas as questões, assistido como observador conscencioso e imparcial a alguns milhares de experiências, a vossa crítica terá algum peso; até lá, não é senão uma opinião individual que não se apóia sobre nada, e a respeito da qual podeis, em cada palavra, ser preso em flagrante delito de ignorância. O princípio de vosso artigo, disto é a prova: “Chamam-se ESPÍRITAS”, dizeis, “certos alucinados que romperam com TODAS as crenças religiosas de sua época e de seu país”. Sabeis, Senhor, que esta acusação é muito grave, e tanto mais grave que é, ao mesmo tempo, falsa e caluniosa? O Espiritismo está inteiramente fundado sobre o princípio da existência da alma, sua sobrevivência ao corpo, sua individualidade depois da morte, sua imortalidade, as penas e as recompensas futuras. Ele não sanciona estas verdades somente pela teoria, sua essência é de dar-lhes provas patentes; eis porque tantas pessoas, que não criam em nada, foram conduzidas para as idéias religiosas. Toda a sua moral não é senão o desenvolvimento destas máximas do Cristo: Praticar a caridade, restituir o bem para o mal, ser indulgente com seu próximo, perdoar aos inimigos, em uma palavra, agir para com os outros como gostaríamos que eles agissem para conosco. Achais, pois, estas idéias muito estúpidas? Romperam com toda a crença religiosa aqueles que se apóiam sobre as próprias bases da religião? Não, direis, mas basta ser católico para ter estas idéias; tê-las, seja; mas praticá-las é outra coisa, ao que parece. É bem evangélico a vós, católico, insultar bravas pessoas que não vos fizeram mal, que não conheceis e que tiveram bastante confiança em vós, para vos receber entre elas? Admitamos que estejam no erro; será prodigalizando-lhes injúria, irritando-as que as conduzireis?

O vosso artigo contém um erro de fato que prova, ainda uma vez, a vossa ignorância em matéria de Espiritismo. Dissestes: “Os adeptos são geralmente operários”. Sabei, pois, Senhor, para o vosso governo, que sobre os cinco ou seis milhões de Espíritas que existem hoje, a quase totalidade pertence às classes mais esclarecidas da sociedade; ele conta entre seus adeptos um número muito grande de médicos em todos os países, de advogados, de magistrados, de homens de letras, de altos funcionários, de oficiais de todos os graus, de artistas, de sábios, de negociantes, etc., pessoas que classificais muito levianamente entre os ineptos. Mas passemos por cima disto. As palavras insulto e injúria vos parecem muito fortes? Vejamos!

Pesastes bem a importância de vossas palavras quando, depois de ter dito que os adeptos são geralmente operários, acrescentais, a propósito das reuniões lionesas: Porque ali não recebem facilmente aqueles que, pelo seu exterior, anunciam MUITA INTELIGENCIA; os Espíritos não se dignam manifestar-se senão aos SIMPLES, provavelmente, foi o que nos valeu para ser ali admitido. (...) Assim, segundo vós, para se admitido nas reuniões de operários, é necessário ser operário, quer dizer, desprovido de bom senso, e ali não fostes introduzido senão porque, dissestes, provavelmente vos tomaram por um tolo. Seguramente, acreditando-se que tivésseis bastante espírito para inventar coisas que não são, muito certamente ter-lhe-iam fechado a porta.

Sabeis bem, Senhor, que não atacais somente os Espíritas, mas toda a classe operária, e em particular a de Lyon? (...) Derramais o ridículo sobre a sua linguagem; mas esqueceis que seu estado não é o de fazer discursos acadêmicos? Há necessidade de um estilo tirado ao cordel para dizer o que se pensa? As vossas palavras, Senhor, não são apenas levianas, — emprego esta palavra com comedimento, — elas são imprudentes.

Sabeis o que fazem esses operários espíritas lioneses, que tratais com tanto desdém? Em lugar de irem se distrair num cabaré, ou de se nutrir de doutrinas subversivas e quiméricas; nessa oficina que comparais zombeteiramente ao antro de Trophomus, no meio desses teares, eles pensam em Deus. Ali os vi durante a minha estada; conversei com eles e estou convencido do que se segue: Entre eles, muitos maldiziam seu trabalho penoso: hoje o aceitam com a resignação do cristão, como uma prova; muitos viam com olhos de inveja e de ciúme a sorte dos ricos: hoje, eles sabem que a riqueza é uma prova ainda mais arriscada do que a da miséria, e que o infeliz que sofre, e não cede à tentação, é o verdadeiro eleito de Deus; eles sabem que a verdadeira felicidade não está no supérfluo, e que aqueles que são chamados os felizes deste mundo, também têm cruéis angústias que o ouro não aquieta; muitos se riam da prece: hoje, eles oram, e reencontraram o caminho da religião, que esqueceram, porque outrora não acreditavam em nada e hoje eles crêem; vários teriam sucumbido ao desespero: hoje, que conhecem a sorte daqueles que abreviam voluntariamente sua Vida, se resignam à vontade de Deus, porque sabem que têm uma alma, e que antes disto não estavam certos; porque sabem, enfim, que não estão senão de passagem sobre a Terra, e que a justiça de Deus não falta a ninguém...

(...) Objetareis, sem dúvida, que, em suas comunicações, os Espíritos dizem algumas vezes coisas absurdas. Isto é muito verdadeiro; eles fazem mais: dizem às vezes grosserias e impertinências. É que, deixando o corpo, o Espírito não se despoja imediatamente de todas as suas imperfeições; e é provável que aqueles que dizem coisas ridículas como Espíritos, o disseram mais ridículas ainda quando estavam entre nós; por isso, não aceitamos mais cegamente tudo o que vem de sua parte, quanto o que vem da parte dos homens. Mas me detenho, não tendo a intenção de fazer aqui um curso de ensinos; basta-me provar que faláveis do Espiritismo sem conhecê-lo.

Aceitai, Senhor, minhas cordiais saudações.

Allan Kardec

Artigo publicado na Revista Internacional de Espiritismo, edição de Julho de 2005.

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